Restos de vida

Restos de vida

A noite é húmida e cheira a terra mesmo nas ruas estreitas do bairro velho. Cheira ao bolor que se acumula nas rachas do tempo, na tinta descascada, nas janelas de madeira apodrecida de cores incertas em rendilhados de vento.

Vai em silêncio encostada aos prédios, brinca com as sombras nestas ruas neuróticas encalhadas no tempo.

Percorre os espaços, dividida entre presa e caçadora, da cidade suja onde os cantos são de mijo e ervas daninhas. Não estranha porque também ela é a erva daninha de alguém, porque também cheira a mijo e a podridão quando o tempo divide a razão.

Vai sorrindo com a manha estampada no rosto e olhos de loucura.

Os fantasmas cruzam-lhe o caminho e afastam-se porque até para eles o perigo é evidente.

Não tem medo, domina o negro com esgares de conquista.

Aos ouvidos chegam-lhe os rumores dos que ali não vivem e sabe que mesmo os encontros invisíveis são fruto do destino. Não há horizontes para lá do olhar, não se lembra de manhãs soalheiras nem do cheiro dos lençóis lavados. Não sabe a cor da água limpa e o sabor do pecado é amargo e descolorido.

História… milhares de histórias despedaçadas, recortadas no seu cérebro desarrumado de uma vida sem presente e de passado confuso.

Vive cansada dos caminhos mas não consegue parar e arrasta-se sem descanso.

Um gato mia de solidão. São poucos os que por ali caminham, cabeças baixas, olhos vítreos onde apenas se lê amargura.

As roupas velhas são sempre as mesmas e não se lembra de as ter comprado. Tinham rendas e laços, quase podia jurar, mas agora só há franjas de sujidade coladas e descoloridas. Não usa cuecas porque as perdeu e não sabe onde, não usa cuecas porque também não lhes sente a falta e até é mais fácil para urinar nas esquinas.

Gostava de ter umas cuecas de renda brancas ou então de algodão macio a cheirar a sabonete e a sol, mas para quê? Quem lhe iria ver as cuecas…

Sente nas pernas a friagem fétida da noite, sente os sapatos molhados das muitas poças de água parada, o dedo grande perfurou a meia gasta e estrangula na biqueira do sapato.

Arrasta um saco onde esconde a vida, arrasta um saco de lona cravado de nódoas como a sua vida. Arrasta o saco como quem passeia um cão, automaticamente e sem presa.

Não está pesado porque se encontra cheio de nadas.

Noutro saco carrega os objectos que nunca perdeu… talvez por sorte.

Tem-lhes estima porque são seus e gosta de lhes tocar, de sentir a forma e as arestas… uma colher de prata ou prateada, um copo de plástico onde se vislumbram letras apagadas de um publicidade perdida, uma rosa de pano que já perdeu a cor, a capa de um livro que nunca leu mas cujo desenho a encanta, um espelho partido e uma escova de cabelo e um batom de cor suspeita e cheiro de ranço.

O tempo mede-se em ondas de lucidez, o corpo desliza entre necessidades de manutenção limitada que lhe permitem seguir em frente.

As normas foram abolidas e caminha ao som das prioridades parcas, caminha incógnita por entre submundos de memórias.

Não conhece os amanhãs e ontem já passou…

Está a amanhecer… vão-se as sombras, as vielas sem nome as ombreiras sem dono…

Está encurralada nas luzes frias do amanhecer, confrontada com verdades que não quer saber, quer o seu mundo fechado e misterioso.

Anda agora mais depressa porque o dia se avizinha, anda agora mais depressa porque a violência nasce com a manhã.

E as pernas dizem que não aos esgares cínicos da realidade diurna.

Entra numa estação de Metro arrastada na multidão que a não vê. Percorre corredores inundados de correntes de ar. Imagina gargalhadas em restos de lixo e folhas perdidas e desconfiada funde-se nas paredes, deixa-se cair e aninha-se em silêncio esperando a noite seguinte.

Ana Cardoso