Quando Esperança nasceu, naquela tarde de trovoada e céu zangado, a mãe presenteou-a com o nome de quem foge do desespero, o desespero de lutar por um pedaço de pão que não se consegue multiplicar por tantas bocas. Esperança escancarou os olhos, pasma com tanta tristeza que se abatia sobre si, olhando para um lado e para o outro, como quem quer abarcar o mundo inteiro num só instante -Há lugar para ti pequena... - suspirou Teresa, a cansada – Vais-te chamar Esperança, quero que tenhas alguma coisa boa neste mundo que não nos dá nada e nos tira tudo... Esperança veio assim parar a uma família de oito, dois rapazes e quatro raparigas, para desagrado do pai, que queria mais moços para o ajudarem no sustento da casa. -Só me dás raparigas, já não prestas para parir. - resmungou entre os dentes e o copo de vinho. Teresa sabia fingir não ouvir, mas o coração sangrava. Casara demasiado nova, tivera demasiados filhos, era agora uma velha de 32 anos, sem forças para nada mais a não ser somente existir. Tolerava um homem que nada mais era que uma besta, e tinha o corpo moído de pancada, de sexo bruto, e dos partos seguidos a que era sujeito. Esperança cresceu com os pés descalços e muita fome; mal dava os primeiros passos já aprendia a ir com os irmãos roubar fruta à propriedade do conde, coisa a que o caseiro fechava os olhos, condoído com tanta miséria. Os rapazes ensinavam também à irmã pequena quando devia fugir de casa nos dias em que o pai vinha de barriga cheia de vinho maldisposto: tinham um gato amarelo, tão magro como eles e doce como o mel mas, acima de tudo, inteligente! Quando Arlindo, o temido, vinha a subir o monte em direção à casa, de boina ao lado e ziguezagueando num caminho imaginário, Tobias, de seu nome, miava aflito à entrada da porta, em alerta para o que aí vinha. Os rapazes pegavam então nas irmãs e corriam para as traseiras, sabendo a sorte que esperava a mãe... A irmã mais velha havia já sido levada para Lisboa a servir uma casa de gente bem, tendo-se tornado menos uma boca a dar de comer. No dia em que partira, aos onze anos, magra e assustada com um vestido de chita em pleno inverno, tiritando de frio, chorava desesperadamente ao que o pai respondera com uma bofetada. Chamava-se Constança. E Esperança nunca mais esqueceu aquele momento, assim como nunca mais a voltou a ver. Quando Esperança tinha quatro anos Teresa engravidou de novo. Ficou desesperada. E então, sem mais nem menos, violou o seu corpo,tentando abortar. Não aguentava mais, o seu corpo não aguentaria outro parto, outro filho, outra ralação, outra boca insatisfeita á mesa! Conseguiu o seu objetivo: o corpo acabou por expulsar a vida que se formava, mas a infeção invadiu-lhe o corpo magro e fraco, a sua pouca vontade de viver não ofereceu resistência e a curta vida de Teresa acabou em poucos e sofridos dias . Arlindo, o viúvo, chorou a sua pouca sorte: que ia fazer com tanto gaiato, catano?! Foram dias confusos para Esperança: os irmãos engoliam as lágrimas para não provocarem a ira do pai, a mãe não aparecia, e pessoas que nunca havia visto surgiam a meio do dia, observando os rapazes e raparigas, inspecionando até mesmo os dentes e as mãos dos mais velhos. Arlindo, o oportunista, arranjara negócio e livrava-se de alguns problemas. A rapaziada estava encaminhada, só tinham que ser espertos para singrarem na vida. Restava-lhe a mais pequena, que não servia para criada nem para apaziguar os desejos noturnos de algum homem solitário e generoso. Falou então com o padre, a fim de ser ajudado na sua dor de viúvo recente. E, assim, pouco tempo depois, Esperança viu-se em frente a uma senhora, enorme e intimidante. Observava os seus pés descalços e os seus olhos enormes, castanhos e tímidos. Fez um gesto para lhe mexer no cabelo comprido e crespo, mas recuou perante a sujidade. Franziu o sobrolho e olhou para o padre, que a recebera na sala da sua casa na paróquia. -O pai está desorientado com a perda da esposa, não tem condições para satisfazer as necessidades básicas dos filhos... - desculpou-se o padre Messias, o ansioso. Sabia que a Condessa Olívia de Valadares era muito generosa quando estava satisfeita. - O pai nada mais é que um porco. - respondeu D. Olívia, com um gesto de desagrado – E ela fala? - voltou a olhar Esperança, que a fitava cada vez com mais curiosidade. - A mãe diz que eu falo muito para quem sabe tão pouco. - respondeu a pequena – E eu tenho saudades de falar com ela. D. Olívia inclinou-se para a frente, fazendo um rumorejar com o vestido preto e amplo. Tinha um brilho nos olhos que agradou Esperança. - Sabes Esperança? A tua mãe deu-te um lindo nome! E assim mudou a sorte de Esperança, a descalça. Foi no mesmo dia para a mansão senhorial de D. Olívia, onde mais do que uma criada lhe deu banho, indiferentes aos gritos que ela dava perante o contacto com a água quente. Era o princípio de uma nova vida, das tantas que Esperança ia viver dali para a frente.
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