Um rapaz e uma rapariga, sentados. Estranhos, se tanto. O rapaz virou-se para a rapariga e perguntou "Quer um cigarro?”. A rapariga que lia um livro, responde sem parar com a sua atividade, "Não fumo obrigada.". O rapaz sorriu e respondeu, "Eu também não, simplesmente encontrei o maço perdido e pensei que talvez quisesse um.". A rapariga sorriu ao ouvir tais palavras e olhou para o rapaz depois de marcar a página em que se encontrava dobrando o canto desta. O rapaz tirou um lenço ensanguentado para onde tossiu violentamente, de seguida dobrou-o cuidadosamente e escondeu-o no bolso do casaco. "A hemoptise destruiu-me o corpo e a vida tratou da mente", explicou.
Levada pela sua nova companhia a rapariga que lia caminhou através da porta na companhia do rapaz do maço, este último que a fechou. Pousaram as suas mochilas no chão e deitaram-se na cama simplesmente olhando para o teto, admirando os insetos que por lá prosperavam. Nem se atreveram a olhar pela janela pois esses bichos ainda eram mais repugnantes do que aqueles que caminhavam numa tentativa de contrariar a gravidade, "Quem me dera ser cachopo outra vez e para sempre.", disse o rapaz virando-se de lado de forma a fitar a rapariga. A jovem despia-se, enquanto o rapaz lhe beijava cada nódulo.
Numa tentativa de dormitar o rapaz do maço abraçava os cobertores, apertando-os contra o seu corpo translúcido. O crepúsculo surgia e com ele luz que trespassava completamente as pálpebras do jovem permitindo-lhe ver de olhos fechados figuras abstratas que não passavam de meros impulsos comandados por cones e bastonetes. A música ecoava do violoncelo, e com ela também o corpo do jovem se mexia, tapando a cabeça com cobertores e almofadas. A música aumentava progressivamente, num crescendo que apenas poderia ser considerado pelo jovem como uma clara provocação. O jovem mantinha-se decidido em não ser derrotado esforçando-se para aumentar também o som dos seus pensamentos tentando dominar a claustrofobia que se impunha no seu cérebro. Encontrava-se rodeado de música que não desejava, cada vez mais forte, cada vez aumentando mais a sua raiva. Sentiu então vapor a sair-lhe pelas orelhas, regurgitando gritos obscenos sobre a rapariga, que nada fazia sem ser praticar no seu belo instrumento, que foi de seguida partido por impulsos animalescos do rapaz que pegando no pescoço do violoncelo prosseguiu à sua destruição, embatendo várias vezes com o objeto no chão até nada se manter sem ser pequenos pedaços de madeira e cordas ensanguentadas depois das chicoteadas que teriam dado, mecanismo de defesa de um ser que nada fez para merecer a sua morte. A rapariga nada disse, olhou-o nos olhos e saiu de rompante. O rapaz fechou a porta e deitou-se voltando a adormecer.
Algumas horas depois passando pelo dono do quarto o rapaz do maço pensou que o melhor seria desculpar-se pelo mau estar que poderia ter causado a outros inquilinos. "Boa tarde! Queria só desculpar-me pelo barulho que eu e a jovem que me acompanhava ontem poderemos ter feito.”. O fulano parecia surpreendido, retorquindo de imediato, "Nenhuma rapariga o acompanhou ontem.". "Ah sim! Desculpe, é que custa pensar pois o meu cérebro é uma mixórdia repelente", respondeu o rapaz. Ao olhar para a cara do homem percebeu de imediato que o tinha assustado, mas também era este o seu objetivo.
Ao entrar de novo no quarto notou que algo se passava. A janela redonda tinha desaparecido e no seu lugar uma Madonna das Rochas recebia-o no pequeno espaço. Virou-se para abrir a porta mas não se conseguiu mexer, pondo-se de imediato de joelhos. Escavou os pequenos
espaços entre as tábuas de madeira do chão com as suas unhas não encontrando sinais de qualquer pedaço de madeira pertencente ao instrumento. Chorava descontroladamente, gritava e falava em línguas que desconhecia. Depois de longos momentos em que sentia as sombras cada vez mais a aproximarem se do seu ser simplesmente cessou os movimentos, trazendo o rosto molhado em desespero para cima, de forma a ser iluminado pela virgem. "Mãe, estou louco?".
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