A Dor de Ser
É-se velho, é-se solitário. É inerente à sua condição de idade avançada, dano colateral da sua prolongada existência. As pessoas do seu passado já foram, ou estão por ir, qual a diferença? Em tempos idos tinha conhecido a realidade de alguém que se via rodeado de risos amigos. Nunca teria considerado os silêncios estrangeiros que se adivinhavam.
É-se velho, é-se pensador. Ou pelo menos ele acha que é. Não se lembra de alguma vez ter reflectido sobre a vida da maneira como agora o faz. Toda a experiência que nele se acolhe providencia clarividência, afinal a vida é tão simples, mas assim tão simplesmente dele se esvai.
É-se velho, é-se triste. Os olhos vagueiam, desfocados, soltos, numa tentativa errónea de encontrar alguma memória feliz para rever de novo. Por vezes pousam nalguns seus iguais, rindo. Não é verdade. Ele sabe, todos sabemos, não há felicidade na velhice, só comprimidos.
É-se velho, é-se doente. As rótulas não se movem, o frio é gelado, o espirro é a extracção da alma, mas ela está morta, foi com todas as outras, Deus as tenha em paz, deixou o invólucro para trás, e não deve ser exumada. As costas já vão pela metade, a constipação é a sentença procurada, desejada e repugnante, assustadora e envolvente, vade retro Satanás, bem dizia Gil Vicente, mas com esta podridão, talvez nem se aproxime em primeiro lugar.
Às vezes gostava de poder ser idoso. Gostava de ser um sénior, e estar num daqueles lares chiques, com auxiliares de acção médica e televisão, e pinturas e aquecimento central. Mas se nem sabia soletrar “residência”, mais vale nem sonhar.
Outras vezes gostava de ser novo, mas isso já foi. Já passou a juventude, já viveu muito, e isso já passou por ele, mera sombra do tempo. Queria viver mais, mas nada se pode fazer, Deus Nosso Senhor assim fez, quebrou o solo para a criação, talvez se tenha descuidado, cruzes credo, e tenha deixado a segregação atingir a eternidade. Talvez tenha assim surgido o tempo, efémero.
Há todo um mundo lá fora. Ouviu dizer que é colorido e não branco, como as paredes do hospital. Ouviu dizer que é grande, e brilhante, e quente, e oh tão desejável… Mas ele é velho e pálido, e baço, e frio, e oh tão asqueroso. Esse mundo, o seu, está a desaparecer.
Ele tenta olhar para trás, para aquilo que foi, para os sonhos pisados, mas falha na sua busca, a visão já não é o que era, está difusa da miopia, não tem a certeza, mas quem é ele senão as suas memórias?
Não há corda que o sustente, é um velho. Oh, é um velho porque é solitário, é um velho porque é pensador, é um velho porque é triste, é um velho porque é doente, é um velho porque é, e ser cansa.
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