Entrei no carro, observei-me rapidamente pelo pequeno espelho e perdendo-me por breves segundos nas mil memórias que se faziam presentes nos recantos do meu olhar profundo, deixei-me deslizar com cuidado pela estrada que se cobria de frio e derramava com plenitude a noite escondida.
Liguei o rádio, flutuei por entre as notas musicais e a voz suave que desenhava-me no peito um sentimento de leveza e bem-estar fazia-me levitar dentro do meu próprio corpo.
Avistei-o ao longe. Estava sentado no passeio, encostado a um muro como quem abandona o corpo e se deixa relaxar. Fumava um cigarro com a mesma fome que eu tinha de o ver, vestindo-se de preto, e mergulhava em mim como se a docilidade de uma história de amor se repetisse agora inundada por um fogo ardente de paixão.
Viu-me. Parei. Levantou-se transpirando um charme um tanto deslumbrante, sorriu olhando-me nos olhos com uma atitude de quem me despe maliciosamente sem sequer ter de me tocar e abriu a porta do carro. Entrou, fechando-a de seguida e olhou-me de novo, desta vez com um carinho presente no peito, um carinho de duas almas que já se amaram uma ou mais vezes em algum passado que não existe agora.
Sorri. Nem precisávamos de grandes palavras. Parecia que aquele filme já tinha sido escrito, lido, realizado, visto e revisto e agora estava a acontecer outra vez. Só tínhamos de continuar a avançar enquanto o filme decorria. E a maneira quente de como a paixão permanecia presente no corpo era absolutamente encantadora.
Entramos em casa, sem nos tocarmos, desejando de nos tocar, os dois, explodindo por dentro da mesma vontade de nos beijarmos. De nos entregarmos ao calor que transbordava na nossa pele.
Que vontade imensa de nos unirmos e preenchermos cada vazio que ficara gravado nas despedidas mal escritas das nossas almas.
Ainda sem nos tocarmos, dirigimo-nos para a varanda onde ele acendeu mais um cigarro, saboreando-o com uma vontade que me fazia deliciar em segredo o sabor da sua língua que brincava com o fogo e se deixava sentir intensamente.
Permaneci quieta enquanto as estrelas e o mar nos iluminavam e purificavam a nossa mente quando, finalmente, decidiu tocar-me. Sentou-se no meu colo. Abracei-o. Abracei-o como se fosse um homem, como se fosse um rapaz, como se fosse um bebé que o meu coração adorava.
Sorri por dentro e suspirei. Parecia-me um reencontro, não sabia bem porquê mas sentia… Sentia que tinha estado à espera daquele momento, daquele toque, daquela união… Mesmo sem saber.
Agachou-se, olhou-me o rosto delicado e frio e beijou-me aproximando-se lentamente, como se me conhecesse a fragilidade e isso fizesse com que me tratasse com cuidado.
Fechei os olhos, deixei-me perder no sabor dos lábios doces enquanto mergulhei o toque dos meus dedos nos seus caracóis alourados que dançavam entrelaçando-se em momentos infinitos de amores perfeitos.
Vestimos o grande manto onde adormeciam as horas longas da madrugada e deixamos que os nossos corpos se deitassem sobre o colchão cansado da fria quietude que o atacava em noites de silêncio e solidão, e envolvendo os nossos beijos e movimentos quentes num berço perfeito de carinho e harmonia que nos vestia a alma, reconfortamos e preenchemos cada ferida por um toque bonito, resplandecendo de amor.
A mente procurava incansavelmente uma resposta lógica que explicasse o que estava a acontecer, como se quisesse desesperadamente saber, controlar, interrogar, analisar… Mas logo perdia a força e morria na força da alma que se fazia tão presente e transbordava carinho de uma maneira deliciosa e inexplicável.
Era como uma página de um livro antigo que precisava de ser relida e consertada nos recantos das palavras escritas à pressa e sem sentimento, agora deitando sobre elas um lindo toque angelical de ternura.
Surgiu, aconteceu e ali ficou, perdido no tempo.
Guardado nas memórias da alma, desta vez com a bonita sensação de que foi vivido um momento onde no céu cinzento de uma eternidade profunda, foi pintado um sonho feito de cores amorosas e suaves que cantavam aos ouvidos das pessoas amargas delicadas canções de carinho.
Um sonho sem passado nem futuro…
Um sonho que surgiu, aconteceu e ali ficou.
Guardado numa das mil memórias das nossas almas.
Guardado nos mil sabores dos nossos beijos.
Laura Mendonça
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