Senta-te aqui, em silêncio, e espera que o tempo passe. Não mexas um dedo e a dor irá embora. Ali, ao virar da esquina, está tudo aquilo de que precisas, mas agora só por um momento, para. Detém-te aqui, observa a cadência do teu coração. Permite-te este espaço, este tempo, sem explicações que nem tu podes entender. Dizem os vizinhos que “tens de ser forte”, “tens de “esquecer”, que “já está na altura”. Nem sabem que, quando to dizem, te tiram o direito de ser humana. Precisas muito de atracar, dentro de ti, de resgatar o que resta, de respirar fundo sem cair. Precisas de carpir, de gritar, de envolver nas tuas lágrimas toda a dor que te consome para que saia de ti. Fica aqui. Não dês nem mais um passo que te aproxime do abismo dos outros. Precisas de tempo, mesmo que não to lembrem. Todo o tempo de que precisares.
Ontem vi-te à janela. Olhavas o horizonte e sorrias sozinha. Achei tão bela aquela imagem, apesar da tristeza velada no cantinho do teu olho, que contrastava com a luz do teu sorriso. Tive vontade de tocar à tua porta, de te convidar para um café e um passeio no parque. Se calhar, fazia-te bem. Sei que ninguém te visita há muito tempo, que ninguém te vê na rua desde o funeral dos teus filhos. Diziam-te que tinhas de ultrapassar, sem saberem que jamais se ultrapassa uma coisa destas, ainda que um dia possas seguir em frente. Não consigo imaginar a tua dor, nunca perdi um filho e a simples menção do mesmo faz-me tremer inteira. Não sei como se vive isto, como se continua a respirar depois de uma perda tão profunda. O que te digo, então, que te possa aliviar? Nada, nada te pode aliviar e é por isso que fugimos todos de ti. Não sabemos o que dizer, o que fazer - logo a ti, que sempre soubeste as palavras certas, a dose certa de cada abraço, todas as vezes que a vida nos tolheu os dias. Desculpa...
No Outono passado, cruzamo-nos na escada. Saías com os miúdos, felizes e barulhentos, cheia de sacos e coisas coloridas. Sorri e disse-vos olá, troquei algumas palavras com os pequenos e segui, certa da vida que me corre nas veias, sem supor que seria a última vez que vos veria. Nesse dia sorriste, visivelmente cansada, mas feliz disseste que a tua mãe fazia anos e que lhe tinham preparado uma festa surpresa. Os miúdos, com 4, 6 e 8 anos saltavam, excitadíssimos, certos de que a avó iria adorar os seus presentes. Lembro-me de ter pensado que os teus filhotes eram meninos muito doces, felizes e que tinhas muita sorte em ter uma prole assim. Não, não imaginava que o Sr. Alberto, o motorista do colégio que os ia buscar a casa diariamente, sofresse um AVC fulminante e morresse ao volante do autocarro escolar, com os teus filhos lá dentro. Ninguém sobreviveu a este acidente, nem os pais que estavam em casa. E a vida mudou, inteira.
Mais de um ano se passou e tu quase nunca sais de casa. Nas primeiras semanas, as noites eram interrompidas pelo som do teu choro, convulsivo e cheio de angústia. Agora já não choras, mas também não vives. Abres as janelas e, por vezes, assombras à janela, mas não existe vida em ti. Faze-lo mecanicamente, sem pensares o que te leva a fazer aquilo, todas as manhãs. Pergunto o que será necessário para que redescubras um sentido na vida, para que possas caminhar mesmo sem os teus filhos. Há muitos meses que dou por mim em frente à tua porta, ao regressar do trabalho, num misto de dor e de absoluta tristeza. Pergunto-me se sabes que fico ali, todos os dias, em silêncio, incapaz de perceber o que vai no teu coração, do outro lado da porta. Não sei como chegar a ti sem te assustar, como te ajudar sem ferir, como te olhar nos olhos sem que me apeteça chorar. Não sei. Mas todos os dias entro em casa e abraço os meus filhos, contigo na alma, triste pela dor que te consome e da qual não te consegues livrar.
Hoje de manhã decidi que ia tocar à tua campainha, ainda que a angústia me dissesse para não o fazer. Saí de casa, levei umas fatias do bolo que tinha feito ontem, enchi-me de coragem e rumei à tua casa. Quando saí do elevador ouvi o riso de uma criança, a tua voz e parei no corredor. À tua porta, estavas tu e a filha dos vizinhos da frente, com 3 anos, que te agarrava a mão enquanto te olhava nos olhos. Pela primeira vez, em muito tempo, presenciei a tua gargalhada. Não fui capaz de me dirigir a ti, permaneci tão quieta quanto possível, naquele canto, a admirar-te cada vez mais, pela capacidade de estares, simplesmente, ali. De estares viva. Quando puseste o joelho no chão, a menina beijou-te na face e convidou-te para o seu aniversário. Penso que te apanhou desprevenida pois não foste capaz de recusar aquele convite. Os pais, agradecidos, confidenciaram que a pequena acordava há vários dias a falar em ti e que não descansou enquanto não foi convidar-te pessoalmente. Depois de se despedirem ficaste ali, de pé, com o olhar perdido no vazio, mas serena e sorridente. Como se algo tivesse mudado, como se por um momento tivesses respirado mais fundo e o mundo não fosse só dor.
Apesar dos sinais de esperança, dos pequenos momentos que podem construir um futuro pelo qual valha a pena lutar, sei que não vais ultrapassar nem esquecer e que há memórias que vão doer sempre. Talvez já o saibas também e, por isso mesmo, aceites seguir em frente, sabendo que tudo isto caminhará contigo, até ao último dos teus dias. Podes construir novas memórias, conhecer pessoas extraordinárias, ter até outros filhos, mas serás, para sempre, a mãe do João, do Pedro e da Clarinha. Na dor que te procurará, em ondas violentas e inesperadas, nos dias ainda por vir, eles serão eternamente o teu oceano de amor. Dizem que és forte porque não choras, porque não gritas, porque ninguém te vê sangrar por dentro. Eu acho que és forte porque te permites sentir tudo isto, visceralmente: a dor e o amor. Regressei a casa com o bolo, as palavras e os pensamentos; amanhã talvez tos leve. Hoje, estou certa, o dia acordou contigo no pensamento.
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