Sorrisos escondidos - Cidade do Funchal

 

Sorrisos escondidos - Cidade do Funchal

Português

Sento-me no velho degrau que derrama sobre o chão de pedras presas antigos passos de quem por aqui um dia andou.

Respiro. Observo.

Começo a despir-me do medo e deixo que os meus olhos saltem livremente de pessoa em pessoa. E são tantas…

Uma senhora idosa de bengala na mão e cachecol bege, olha-me com ar de quem desconfia e eu desvio o olhar, envergonhada, sorrindo. Parece que me leu os pensamentos. Parece que sabia perfeitamente que era ela quem eu escolhera para descrever primeiro e isso causava-lhe uma certa irritação, o que fez com que levantasse o nariz e continuasse a andar séria, com um ligeiro toque de ofensa no rosto. Se ao menos me sorrisse…

Às vezes, como agora, sinto-me completamente estranha em comparação com as pessoas que me rodeiam. Como se fosse uma completa loucura sentar-me aqui perto do passeio banhado por pedras pretas e brancas e começar a escrever sobre o que sinto e o que vejo.

Mas também… Se não fossem estas pequenas loucuras que tenho a minha vida não teria cor.

Enquanto isto, um homem que aparenta ter cerca de uns quarentas e tais anos, aproxima-se de mim e deixa-se ficar aqui, olhando a rua, enquanto fuma um cigarro tranquilamente com o corpo vestido por calças de ganga, t-shirt às riscas verdes e brancas e sapatilhas simples, cinzentas escuras quase pretas. Está sério mas descontraído, parece que pensa e reflecte sobre algo... Nem me vê.

Foi-se embora. Esperava a mulher e a filha que estavam dentro da loja provavelmente a tentar escolher um vestido ou uns sapatos para a noite de fim de ano, que por acaso é hoje, mas talvez tudo isso acabou por ser uma tentativa falhada pois ou as coisas são muito boas e não nos servem ou são demasiado caras, ou simplesmente não gostamos de nada e tudo é incrivelmente barato e acerta-nos na perfeição.

Que engraçado como deita-mos as culpas “às coisas” quando a verdadeira inquietação e o verdadeiro “desajuste” só existe dentro de nós.

As pessoas olham-me com uma estranheza tão presente no olhar… Devem estar a pensar: “Mas porque é que está uma rapariga sentada no degrau a escrever com um sorriso estampado na cara? Deve ser louca… Ou então está drogada!”

É incrível como eu acredito piamente que as pessoas têm pensamentos que na realidade só existem dentro da minha cabeça.

Talvez seja isso… Ou as pessoas estão realmente a olhar-me com uma estranheza no rosto que até as faz franzir a testa ou talvez os meus pensamentos inseguros estão a desenhar sensações inexistentes nos corpos que se movem apressados pelas ruas, como quem está extremamente atrasado para algo. Acabam por estar atrasados para a vida, no final de contas…

Desprendo-me novamente dos meus pensamentos e o meu olhar perde-se desta vez num corpo feminino, esbelto, que como todos os outros corpos desta rua passa apressado, vestindo calções castanhos de tecido leve, camisola preta e botas, deixando que o cabelo comprido e liso, também castanho, cubra os ombros, o peito e as costas enquanto balança delicadamente quando é abraçado pela suave brisa fresca que surge no ar.

O meu olhar sorri ao ver que ela leva uma rosa vermelha na mão mas logo perde o contentamento quando repara que a expressão que lhe cobre o rosto é de uma insatisfação tão grande que só deixa duas teorias possíveis para desmistificar esta incógnita: Ou a rosa veio da pessoa certa mas em seguida surgiu algum inconveniente acidental (que causou discussão e acabou por estragar tudo) ou então veio mesmo de algum inconveniente e a pessoa certa… Nem vê-la…

A vida é assim… Aliás, nós na vida somos assim.

Raramente nos deliciamos e agradecemos o que recebemos de bom. Em vez disso, focamo-nos sempre no que poderia ter sido diferente, que podia ter sido de outra maneira, que podia ter sido mais tempo e foi pouco, que tivemos mas já não temos... E depois descobrimos que afinal nunca tivemos nada... Enfim... Infinitas lamentações que fazemos devido à falta de humildade e gratidão pelo que temos e pelo que somos…

Nós… Eu realmente tenho uma piada! Que mania a minha de dizer “nós” quando na realidade eu quero dizer “EU”. Mas claro… Sempre é mais fácil falar no geral!

É difícil aceitar e reconhecer o lixo que está a mais e que precisa de ser libertado…

Quase mergulhei totalmente no mar agitado da minha mente quando de repente senti alguém bem perto de mim a respirar intensamente, enquanto derramava o olhar sobre as duas páginas escritas. Voltei a sentir-me presente e olhei para o meu lado esquerdo… Era um homem, sem-abrigo, de rosto extremamente vermelho e gasto, olhos semi-abertos, azuis, lindos, roupa velha, pullover bege, quente mas rasgado nas mangas e nos cotovelos e calças sujas, pingadas de vinho, com umas mãos pretas de poeiras acumuladas e noites de frio passadas ao relento e umas unhas doentes, mal tratadas, doloridas.

Olhei para ele. Senti o meu corpo a querer fugir e recuar mas decidi pela primeira vez não ligar aos pensamentos que surgem quando a vida nos surpreende com algo novo e arrisquei, acabando por ficar para saber o que ia acontecer a seguir.

Ele, com cara de quem faz um grande esforço para conseguir ler e perceber, como quem está realmente interessado em saber, perguntou-me soltando a voz rouca de maneira suave mas com um doce toque de alegria de quem como já não tem nada a perder entrega-se de corpo e alma às delicias da vida:

- Posso assinar?

Sorri, o meu peito encheu-se de alegria mas a minha mente até agora não percebeu bem porquê.

- Pode!, respondi sorrindo mais uma vez.

Ele desenhou um rabisco demorado que eu não sei se foi inventado naquele momento ou não e olhando-me nos olhos, talvez um bocado ausente mas com uma sinceridade absolutamente gratificante, disse:

- Um bom ano para si.

E seguiu o seu caminho.

Olhei-o sorrindo enquanto se afastava...

Quem diria que depois de ficar horas à espera de ver alguém que me sorrisse, o sorriso que iria pintar aquela rua cinzenta por uma explosão de cores vivas seria aquele que o homem que mais tinha razões para ser triste, me entregou com toda a sua felicidade.

 

Laura Mendonça

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