Samuel

 

Samuel

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Ainda hoje trago comigo os soluços do medo de Samuel. Faço para me convencer de que nunca tive nada que se parecesse com um puto ressabiado com a impertinência da dissemelhança, não posso ter sido eu a dizer aquelas coisas, a liderar aquelas procissões de desdentados a concorrer a um lugar no trono da irreverência. Ainda hoje não sei que regalias trazia verdadeiramente o tal trono, talvez não tenha chegado a alcançá-lo e tenha crescido a acreditar que sim e tenha arranjado amigos que não eram para mim. Eles gritavam desordeiramente que ela tinha olhos azuis e umas bochechas que pareciam dunas frescas e um cabelo liso e alourado nas pontas e que fazia bem as contas de cabeça e ainda saltava à macaca como ninguém. Mirávamos embeiçados aquele troféu todo ornamentado, tão limpo, tão limpo que refletia os nossos olhos esbugalhados, a nossa fome leonina, as nossas figas atrás das costas quando jurávamos bandeira no campo de futebol. O campo de futebol...  Samuel nunca meteu os pés naquele campo, nem para ser a rede expiatória de uma baliza onde eu marcava muitos golos, eu era bom, eu fintava-os todos, eu fazia-lhes cuecas e ratas e nós e sentava-os no chão sem lhes tocar, tomara que ela tenha visto esta bomba, moralizava-me eu a matutar naquele beijo que Isabel nunca me viria a dar. E Samuel a comer a sua sandes de paio e manteiga, entornado como leite pelos degraus da entrada, a jogar o único jogo que nós o deixávamos jogar: fazer corridas com os ponteiros do relógio, ver quem dava primeiro a volta completa, coisa que ele nunca conseguiu porque se distraía a ver-me marcar golos. Tinha uma mochila com um remendo que a tia lhe tinha feito, um carrinho vermelho a deitar fumo por todo o lado: na altura fizemos esta piada porque a mochila de Samuel estava cheia de pisadelas nossas muito muito pretas e dizíamos-lhe que era do escape do carro que estava roto como a mochila e as calças. Ele tirava as peles do paio devagarinho para passar o tempo, coçava os piolhos que eu lhe agoirava, eu roubava-lhe às vezes o boné para ir a correr atrás dos outros e meter-lhes medo, eles fugiam porque eu os fazia crer que se o boné lhes tocasse tinham que rapar o cabelo, Samuel olhava o relógio e o paio e a chuva que só o molhava a ele. Tinha um olhar avelã, meio achinesado, meio entorpecido, meio enlameado, e um dente para o podre, um cabelo árido, de aço, quase a picar, um nariz moncoso com peles a cair, e tinha um fio de ouro ao peito com a letra S, de silêncio. A chuva insinuava-se aos farrapos dos seus sapatos, ele esperava, e eu passava de quispo, encapuçado, a correr com o boné atrás do meu orgulho, anestesiado e esquecido de que mijava na cama todas as noites, esquecido do meu medo do escuro, esquecido de que me davam a sopa à boca por causa minha inabilidade com os talheres, esquecido de que não adormecia sem ouvir uma história, esquecido do imperador do meu bairro cuja cintura estava ao nível dos meus olhos, ele que me dava enxertos de porrada se eu não lhe desse o cromo que lhe faltava na caderneta. Eu não comia sandes de paio e manteiga, eu roía as unhas e fingia que fumava cigarros com um pau de um chupa: Samuel era sempre a minha beata, mal apagada. Eu aprendi a andar de bicicleta com cinco anos e tinha a mania de fugir de casa para ir apanhar romãs. Isto voltou a acontecer no dia em que eu fiz anos pela oitava vez. A minha terceira classe tinha vinte e quatro alunos, vinte e cinco quando era a professora a fazer a contabilidade. Para mim, Samuel era uma parede, um taco solto no chão, um bocado de giz partido, uma mesa coxa aos solavancos, uma pista de aterragem para os meus aviões de papel, era cigano. A minha raça era suprema, o meu caderno não tinha um erro ortográfico nem uma letra além dos limites de cada linha, as minhas idas ao quadro eram sempre premiadas com uma bola verde, a minha reputação era imaculada. Por isso mesmo, Samuel não seria convidado para os meus anos. Nesse dia, eu enverguei um fio de ouro igual ao seu: os rissóis da minha avó esfriaram, as velas não foram sopradas e muito menos abocanhadas pela ingenuidade, os balões murcharam como flor à sede, eu continuei com sete anos. Junto da romeira estavam muitas beatas inflamadas: Samuéis. Ele chorava mais que a chuva. Disse-me que lhe tinha morrido o pai também. Peguei na beata em pranto e queimei-me. Pedi a Samuel um perdão de terceiro grau. Ele cantou-me os parabéns. Tenho a cara desfigurada. 

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