A rua onde o tempo para

 

A rua onde o tempo para

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A Rua das Camélias é a minha rua favorita da cidade. Tem um lindo nome e, só por este facto, seria capaz de a adorar mas, na verdade, não foi por esta razão que me enamorei dela: aqui vivem os protagonistas da mais bela história de amor que habita na minha memória. Há mais de quatro décadas que tive o privilégio de conhecer o Sr. Artur e a D.ª Aurora, duas pessoas adoráveis que me enchem a alma. Na altura em que eu era gaiata, a D.ª Aurora era a melhor modista da cidade. Vinha gente de todo o lado, até gente das revistas, da política e da banca, procurar os serviços das suas mãos abençoadas. Contavam as minhas tias que, décadas antes de eu nascer, já as mulheres se sentiam rainhas vestidas por aquela doce senhora de olhos muito azuis, sorriso sereno e pele de porcelana. O Sr. Artur era joalheiro, arte herdada do pai e do avô, e mantinha uma rotina de trabalho que lhe permitia esperar a sua Aurora, ao final da jornada, sem falhar um dia que fosse. Quando a D.ª Aurora fechava o atelier, já o Sr. Artur a mirava com um sorriso de orelha a orelha, como se a visse, sempre, pela primeira vez. Foram muitas as vezes em que estive sentada no banco do jardim, do outro lado da rua, a apreciar esta cena, invadida por sentimentos paradoxais: por um lado, fascinada pelo fenómeno de uma história de amor que recomeçava a cada dia, por outro lado, incapaz de perceber que a disfuncionalidade da minha família não me permitia, ainda, entender aquela entrega. Na realidade demorei muito tempo a compreender que aquilo é que era, realmente, amor. E que, nesse espaço sagrado, não podiam viver a dor, o medo, a raiva, a tristeza e a angústia (sentimentos e emoções que, no quotidiano da minha família, significavam afeto, carinho e preocupação), subjugados em mim pelos sorrisos, pela cumplicidade daquele casal, pela intensidade dos seus abraços. O Sr. Artur e a D.ª Aurora eram, aos meus olhos, as pessoas mais poderosas do universo: tinham o dom de fazer parar o tempo e de me inundar dos melhores sentimentos do mundo.

Um belo dia, a sair do atelier, onde insistia em trabalhar diariamente apesar da idade avançada, a D.ª Aurora deu uma aparatosa queda, mais rápida do que o Sr. Artur conseguiu pestanejar. Estendida ao comprido rebentou num pranto convulsivo, enquanto balbuciava que não tinha partido nada, a não ser o orgulho, e que a deixassem ficar ali até a vergonha a consumir. As pessoas que passavam iam parando, incertas sobre se deviam intervir ou não, quando, subitamente, o Sr. Artur se deixou cair no chão numa acrobacia digna do “Cirque du Soleil” e rebolou até à D.ª Aurora, sem proferir uma só palavra. Esta, incrédula, tinha esquecido as lágrimas e a vergonha e observava aquele homem, caído a seu lado, cujo ombro encostado ao seu a fazia sentir em casa. Foi ele quem, gentilmente, quebrou o silêncio:

- Queres ficar aqui estendida, meu amor, muito bem, ficamos. Já sabes que onde estiveres é onde eu estou. Só espero que não chova… e olha, Aurora, minha amada, lembra-te que já não vamos para novos… se calhar, daqui a vinte anos, experimenta encostar-te a um muro ou a uma árvore, estás a ver a ideia? Estas sestas no passeio, no meio do povo a passar, só porque sim, são capazes de nos matar, Aurora. Mas hoje, meu amor, estamos aqui. Dá cá a mão, isso, aperta. Vês? Está tudo bem. Quer dizer, se não partiste mesmo nada… Se partiste, Aurora, pelo amor de Deus, diz-me, meu amor, que temos de correr já para o hospital! Correr… rastejar! Assim que eu conseguir virar esta carapaça ao contrário…

Depois disto, a D.ª Aurora agitou-se num riso que a sacudiu inteira e o Sr. Artur permaneceu ao seu lado, fascinado com cada gargalhada que lhe inundava os sentidos. Lentamente, foram-se elevando e quando estavam, finalmente em pé, frente a frente, ele tomou-lhe a face entre as mãos e beijou-a ternamente. Naquele momento mágico todas as preocupações da D.ª Aurora se desvaneceram. Pude ver a tensão abandoná-la e o seu corpo sucumbir, seguro, no abraço do Sr. Artur. De olhos fechados – estou certa que viam mais do que todos nós com eles bem abertos –, ficaram unidos naquele beijo terno, enlaçados, esquecidos do mundo e dos demais. Nada, absolutamente nada, podia ser mais belo do que o que eu presenciava e sentia. Ainda que o futuro fosse uma incógnita na minha cabeça, ainda que aquele Amor Maior pudesse nunca encontrar o seu caminho até mim, eu soube, naquele momento, que era real. Que pessoas de carne e osso o tornavam genuíno, visível, único. Aquele episódio mudou a minha vida. Tornou-se a bússola da minha alma nos assuntos do coração, guiando-me em muitas tempestades violentas, lembrando-me de nunca viver (voluntariamente) pela metade: o amor era precioso demais para ser tratado como um sentimento de segunda.

Deixei de os ver durante muito tempo, ou de passar na Rua das Camélias e, lentamente, a sua memória tornou-se distante e difusa. Contudo, ao longo da minha vida, quando precisei de sair de histórias caóticas, feitas de dor e de engano, eram eles que me ancoravam e me davam forças para me resgatar a tudo que não fosse, realmente, amor. Na verdade, o amor não pode ser chamado de tal sem um lugar seguro onde se cresce a dois, soube-o com eles. Nenhum amor sobrevive uma vida inteira pela metade, nem o amor-próprio consegue tal proeza. E as minhas células recusaram esquecê-lo, mesmo quando a memória o atirou para uma gaveta perra e (quase) esquecida.

Esta semana voltei à cidade. Já cá não vivia há muito tempo e soube bem voltar a casa. Perdida em mil pensamentos, dei por mim a calcorrear as ruas que há muito não trilhava, guardadas na pele e na memória. Quando percebi onde estava, tive um baque! Naquela varanda florida à minha frente, assomava em tempos a D.ª Aurora para descansar os olhos da costura. Como era bela, altiva, serena! Aqui, mesmo ao meu lado, aconteceu o trambolhão monumental da D.ª Aurora e a queda por solidariedade do Sr. Artur. Hoje, terão os dois mais de noventa anos. Sorrio, com o coração derretido e, ao mesmo tempo, apertado: é perfeitamente plausível que nenhum dos dois esteja vivo e entristece-me este pensamento. Não quero ir embora, ainda não estou capaz de os deixar partir em mim. Sento-me em frente à varanda, tomo um café e saboreio cada pormenor daquela história, como se tudo se tivesse passado ontem. Décadas de detalhes saltam na minha mente, sinto o coração expandir só por lembrar. Posso sentir de novo o aroma do perfume da D.ª Aurora, posso escutar a sua gargalhada e a voz quente do Sr. Artur! Posso lembrar a dança dos seus movimentos, a linguagem dos seus corpos, a força do seu olhar! Sinto-me em estado de graça enquanto viajo na sua história e a registo em mim, mais uma vez, na esperança de que nunca morra.

Depois de um tempo que não sei precisar, perscruto o local em busca do empregado de mesa. Duas mesas ao lado, uma gargalhada desperta a minha atenção e os meus olhos detêm-se num par de olhos azuis que sorri enquanto, docemente, duas mãos aproximam um rosto do seu e beijam os seus lábios. É quando esses olhos, finalmente, se fecham, que reconheço aqueles dois belos nonagenários. Não os teria reconhecido, todavia, se caminhasse, por ali, distraída… O que eu teria perdido! Estou perplexa! Sinto-me tão grata por este momento… Constato, maravilhada, que o tempo se encarrega de nos tornar magníficos, se tivermos o privilégio de viver longos anos; porém, hábil e determinado, brinca com os nossos traços, ornamenta-os de rugas e torna-nos uns jovens camuflados em fatos decíduos. Enquanto uns amargam, outros transcendem, mas todos, inevitavelmente, envelhecem. Contudo, os olhos da D.ª Aurora não envelheceram um único dia. Alheios ao passar dos anos, continuam majestosos, imensos, felizes, cheios de amor. Não lhes falei mas bebi da sua presença, da sua energia. Deixei-me abraçar pela magia daquele amor de uma vida inteira e pelo sorriso que ainda partilham, tão cúmplice, pleno e sereno. Fui inteira também, naquele momento, naquela esplanada, naquela brisa suave que me trouxe o perfume da D.ª Aurora e a fascinação do Sr. Artur por aquela bela dama por quem, claramente, se apaixonava todos os dias, há mais de setenta anos. Quase duas décadas depois daquele momento que mudou a minha vida, volto a sentir que nada, absolutamente nada, pode ser mais belo do que aquele amor. Na rua onde o tempo para, renasço na certeza de que só poderei viver algo igualmente grandioso se nunca esquecer que, no que toca aos assuntos da alma e do coração, menos que tudo é nada.

Hoje, não sobra espaço nesta cama gigante onde durmo todas as noites. Transbordo amor, sinto o meu corpo repousar, tranquilo, imenso. Sinto a alma em casa, dentro de mim. Sou inteira, aqui, agora, em mim própria – sempre fui, na realidade, mesmo quando não o sabia. Sei que já não tenho muitas décadas para crescer e envelhecer com um companheiro, nas curvas do corpo, nos desafios da psique, nas rugas da pele; mas serei inteira numa vida plena vivida a dois, durante o tempo que me for concedido. O meu “Artur” (que já deve vir um pouco sénior) não precisa de se atirar para o chão quando me der o fanico mas, no mínimo, deve ser alguém inteiro também, que não precise de mim para nada mas que me escolha, todos os dias. Enquanto não chega, sei que a Aurora, o Artur, a plenitude e o amor incondicional existem. Sempre saberei. E basta-me.

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