Requiem ao teu rosto em mim

 

Requiem ao teu rosto em mim

Português

Fecha a porta. Respira fundo. Cumpriu o dia e pode despir-se das palavras com que o desenhou. Despir-se dos rostos que o habitaram. Não porque estes e aquelas lhe sejam hostis Pelo contrário. Agradece-lhes. Sustentaram-na nesse dia preparando o acolhimento da noite. Pelo contraste. Apenas pelo contraste. Sente que algo se organiza em si enquanto cumpre assim, os dias, cheios; apesar do cansaço; apesar da vontade nem sempre se manifestar “a tempo”.

Mas agora urge despir-se. E caídas as palavras do dia que, uma vez no chão, como que por magia desaparecem, aí está a outra camada. Mais palavras. Mais aglomerados – palavras-quistos.

Pega num pau de incenso e acende-o. Olha para o chão. No meio do caos percebe que há um amontoado que não lhe pertence. Teria sido esse o estrondo da manhã. Arruma aquilo que não pertence ao caos. “O amante do Vulcão”, “Justine”, “O Estorvo”. Livros que está a ler ou que está para ler ou reler. E que por isso foram ficando ali, na beira da estante, no caos da estante, nunca no caos do chão que é outro.

Tudo tem um tempo certo, pensa enquanto arruma.

E o caos do chão é feito de cores e de muitos cheiros. Não de palavras. Não consegue agora relacionar-se com as palavras. Quer esvaziar-se delas.

Olha para os cd's amontoados em cima da pequena mesa. Hesita. Mas não. Não quer ouvir música. Com ou sem palavras. Apenas o incenso. Apenas os cheiros e as cores. Os cheiros intensos das tintas e da cola. A música pertence a outras esferas. Várias. Hoje não quer nenhuma delas. Não quer fazer vibrar as emoções. Nem as contemplações. Não quer ser transportada. Quer estar ali. Simplesmente ali com o que aparece sem ser chamado.

E essa outra camada instala-se; pesa. Está longe o respirar fundo; o fechar da porta; o chegar a casa. Precisa fechar outras portas, ou abrir outras portas.

Não. Não quer que lhe expliquem mais nada. Nesse momento odeia as palavras - essas, que lhe chegam. Não a palavra. Nunca a palavra! Mas todas as palavras que saltam pela sua cabeça, pelo seu corpo, pela casa. Que fazem ricochete e a atingem onde não podiam atingir. As palavras lançadas em cegueira pelos porquês ou pelos porque.

Ela quer o silêncio. Não quer explicações. Apenas o silêncio. Em si.

Ou então a palavra...

E olha aquele rosto ausente. Desvia parte do caos e senta-se no chão. Frente a frente com esse rosto. Não se pergunta porque ele está aí. Não quer perguntas. Algo o trouxe até si. Algo fez com que se instalasse em si. Algo fez com que crescesse e se alargasse por todo o seu écran. Mas agora está ali. Na sua frente. Com as dimensões do humano. E como está não estando, permite-se tomá-lo nas suas mãos. Tocar cada milímetro de pele, de músculo; daqueles pequenos músculos que pertencem à inconsciência da expressão e nos revelam; e são com as palavras a verdade. Toca com a atenção que só a pele e um olhar amoroso são capazes. E percorre-o aos poucos. Tentando sentir, perceber não construindo, a sintonia. Como está tão cravado em si... Sabe, porque a manhã lhe disse, que esse rosto partirá.

E as palavras que não quer ouvir chegam numa torrente imparável. De uma fonte seca – palavras-espectro. Ela afasta-as. Está totalmente absorvida por esse rosto. Pela sua presença e pela sua partida. Tenta sentir o que de si levará. O que de si já está a levar. Está frágil. (chora?) Sabe que o deve deixar partir e continua a percorrê-lo com os dedos, com as mãos – essa prolongação do cérebro e do coração – numa carícia derradeira que é despedida. Chora - uma lágrima-requiem ao que podia ter sido. Mas não prende. Nunca prenderá. Despede-se. E por entre as suas mãos esse rosto vai-se dissolvendo (não ainda dentro de si, apenas nas suas mãos) – ela esculpe a sua dissolução aceitando o vazio que se fará.

A torrente de palavras-ruído continua mas nesse momento ela está no outro lado do vidro.E o rosto já foi, sente. Aceita. Com as mãos vazias, aceita. O pau de incenso chegou ao fim. A música não toca. A palavra nunca veio. Ela permanece sentada no chão. Ela e a já quase ausência do rosto. Parte do caos do chão. Por entre os cheiros da cola e das tintas. E espera que passe a nostalgia do que não foi. Do que talvez não tivesse que ser. Espera o sorriso, o seu sorriso que sempre aparece. O sorriso engendrado longe dos seus olhos, da sua consciência, numa penumbra qualquer de si. O sorriso com que se levantará do caos e prosseguirá o dia. Não já a manhã. Não já a Noite. Mas o dia.

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