Disfarçava a vergonha com os óculos escuros. O cabelo caía-lhe desregrado sobre os ombros, deixando entrever a cicatriz que esperava que ela (não) reconhecesse; lábios secos seguravam um cigarro apagado, com o desdém fácil de quem não se importa de morrer – fantasmas dos que haviam beijado os dela.
Havia um mês que a visitava assim, incógnito; um mês que era o seu último naquela terra, e, tinham dito os médicos, talvez naquela Terra. Findada aquela noite, o músico morreria, o bêbado tomaria de novo o seu lugar; sem o suspeitar, ela ter-lhe-ia dado mais quatro luas da sua vida – só assim lhas daria.
Conheci alguém que também tocava piano, dissera ela na primeira noite, E tocava bem, perguntara ele, Não sei, nunca tocava para mim. A dor na voz dela abrira buracos no chão, no tecto, neste planeta e nos outros; ele não sabia como alguém naquela sala lhe sobrevivera. Calara-se. Sentara-se e tocara, e depois fizera-o durante um mês, e todas as noites haviam trocado silêncios que falavam mais do que palavras.
Mas aquela era a última. Entrou e viu-a à espera, porcelana delicada no meio da podridão, o vestido branco a desafiar a noite. Sentou-se sem a olhar; respirou fundo. Compusera aquela peça só para ela – dizia-lhe adeus; tocou-a como se o mundo fosse acabar – ia. Era uma melodia irreversivelmente triste; um arrependimento que procura em vão anular-se.
O som morreu. Foi então que sentiu uma mão afastar-lhe o cabelo, acariciar-lhe a cicatriz; toda ela era seda e um meio-sorriso enigmático, e subitamente – Afinal ele toca bem – o último dedo já a largar-lhe o rosto, uma paz infinita na voz.
Voltou-se, saiu. Petrificado, confuso, o bêbado ficou a vê-la ir, a figura elegante a deixar um rasto de céu por entre as mesas encardidas.
Não houve manhã seguinte.
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