Personificações da Alma

 

Personificações da Alma

Português
Fotógrafo: 

Talvez tenha sido parte da minha imaginação, eu não sei, nem por mil libras me conseguiria lembrar. foi um breve momento ainda que comprido tenha sido o tempo, e foi, foi comprido, interminável. Tinha pedido por este tempo, tinha pedido muito. e sim. se calhar foi feitiço, com um incontornável e inevitável sentido, como um desastre horroroso de dramaturgos franceses e poetas mortos, mas perdeu-se ali, com ela e com a agitação dela naquele acaso de mal entendidos entediados pelo tempo ou talvez isto seja apenas o tipo de coisas que pensamos as quatro horas da manha quando estamos felizes. fica tudo para o acaso que se lembra de dedilhar a ferida quando lhe convêm, diambulo como um doido, bêbado, numa rua estreita dessa cidade do Porto, numa mão com a arma e um cachorro quente na outra. Lembro-me sempre desse momento, como um clip, nessa sucessão de imagens que passa neste cinema antigo, neste palco deserto, onde se abriam portas para conversas sobre os mais variados assuntos com cigarros, cocaína e sarcasmo como companhia. As tatuagens no pulso, o blusão e as motas preenchiam uma fotografia desses jovens anos, coberta de pó, parecemos tão serenos quando acendemos o cigarro, é como encontrar um velho amigo para meter a conversa na mesa enquanto tranquilamente aguardamos pelo até já, sabemos sempre que vai dar merda, mas continuamos repetitivamente a ir até aquele cinema antigo, onde nos sentamos no nosso palco aleatoriamente em cadeiras e começamos a conversar, podemos sair quando quisermos, podemos ficar lá calados... Recentemente decidi fazer isso enquanto escrevia... E escrevi sobre eles e sobre o cinema antigo, e escrevi sobre as nossas conversas, tão perturbadoras, tão intensas e inesperadas. Escrevi sobre como começávamos dialogos e como esses dialogos iam fazendo alguns levantarem-se e irem embora a chorar, muitos ficavam lá a chorar, alguns já deixaram de chorar completamente, a muito tempo. Pelo menos, é assim que eu os vejo enquanto estou sentado na minha cadeira, como se eles fossem de cristal, como se lhes tivessem sido tirado alguma coisa, quase como se, a sua inocência fosse perpetuamente roubada. Mas eles acabavam por voltar nem que alguém os fosse buscar, mais tarde ou mais cedo todos passavam por ali, pelo meu palco deserto, pelo meu cinema antigo. Riamos as vezes enquanto se mantinham inúmeras divergências internas, era tudo tão nosso.
Eu comecei a escrever porque queria fazer uma peça de nós, afinal, éramos autênticos, brilhantes nas nossas pequenas intrigas e na maneira como mostrávamos sempre mais do que era preciso, até sairmos, derrotados por nós. A saída dão-te sempre um cachorro e uma arma, o cachorro é um cliché, a arma é uma sugestão. Comes enquanto relembras o que foi dito lá dentro e matas-te a seguir com o tormento, mas ainda mortos caminhamos, caminhamos para um lugar qualquer para apaziguar as feridas, nem importa onde, o que importa é voltar.

Ruca Soros

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