OLHO POR OLHO DENTE POR DENTE …

 

OLHO POR OLHO DENTE POR DENTE …

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Quando te olhei no fundo dos olhos não julguei ver o que vi. Fizera-o com o carinho e a saudade guardadas em mim desde a juventude, mais concretamente desde que a tua bata branca me deslumbrara, impecavelmente limpa e passada, donde saíam umas mãos esguias de dedos compridos e finos, de unhas tratadas, cuidadas, e de um púrpura que muito me embevecia.

Púrpura Rebel da MAC disseste tu depois, num dia mais calmo em que arrumavas demorada e criteriosamente na respectiva caixa os olhos de vidro do mostruário e me explicavas a ordem do catálogo, para que posteriormente pudesse fazê-lo obedecendo à classificação que maternalmente completavas, como se naquela caixa um filho teu que doravante me confiarias.

Olhando-te, mais que ouvindo-te, eu dava as primeiras passadas como aprendiz de feiticeiro naquele laboratório de óptica cujas imagens me impressionavam e enfeitiçavam de tal modo que, enquanto te ouvia tentava adivinhar qual o exemplar do catálogo com que os teus olhos se pareciam, e por isso te mirava incansavelmente pelo canto do olho, dissecando-te a vista com o meu olhar de aprendiz, córnea, cristalino, íris, pupila, dilatando-se e contraindo-se como o diafragma da máquina do senhor José Alves, o “bolacha amaricana”, e cujas habilidades eu admirava, desde a imagem invertida à sua ressurreição final na tina do sulfito de sódio, a cuja magia eu dava mais valor agora por saber que também na retina a mesma imagem invertida, e igualmente a pupila e o cristalino como o obturador e a lente desse maravilhoso mecanismo em cujos segredos eu agora me iniciava, munido da mesma curiosidade que animava os magos ante o alambique ou os alquimistas transmutando em ouro a pedra filosofal no cadinho da sabedoria.

Admirava-te pois com paixão, não apaixonado mas com paixão, procurando ver para além do teu olhar, buscando compreender para além do toque mágico das tuas mãos ternas manobrando o oftalmoscópio e dando vida a um globo ocular inerte, preenchendo o vazio aquoso do seu humor, ou engalfinhadas num refractor oftalmológico ajustando dioptrias, lamentando a Coróide e doseando o colírio, maquinalmente explicando aos pacientes e a mim, iniciado, os mistérios das cores e dos Cones, ou a sensibilidade dos Bastonetes e a transformação da luz e eu, chegado aí, imaginava o clarão que terá cegado os pastorinhos olhando a tal azinheira, os Cones inflados de cores milagrosas entre as quais, sobre uma nuvem, pairava a Senhora cuja fé os cegara, incapazes de compreender a histologia dos olhos, os mesmos olhos que nos garantem os julgamentos que, ignaros, nos iludem e nos enganam, mais que nos surpreendem, pelos quais juramos sempre mas que, para sermos coerentes, deveríamos igualmente estar disposto a arrancar ao primeiro falso testemunho que nos obrigassem jurar.

Não juro, mas admito ter levado algum tempo a perceber o teu humor, sempre alternando se pacientes presentes ou não, e que demorei a entender porque me confundias com o Humor Vítreo, deixando-me constantemente pendurado das minhas interrogações e do teu olhar, o mesmo olhar que ainda vejo nos teus olhos castanho esverdeados de esperança, cujo fundo intento penetrar agora como há quarenta anos, enquanto debruçado para ti te beijo a testa com a mesma ternura que sempre te dediquei, hoje já não admirado com a tua magia mas antes com a ignorância que então me animava, a mim, aprendiz de laboratório e de feiticeiro, pasmado ante ti, Merlin de mim, cuja ciência objecto e métodos me encantavam de tal modo que ignorava o passar das horas e almoçava correndo p’ra voltar para ti, cujo olhar encantava e cujas mãos induziam milagres, qual “toque de Deus”, transmutando-te a meus olhos e pensamento na Senhora da azinheira, deslumbrando e enganando com a tua verdade os males terrenos, devolvendo a vista aos cegos como quem devolve a esperança a dignidade e a vida, quase que debaixo das colunas de um templo ordenando:

- Levanta-te, deixa o teu leito, e vai para a tua casa. (S. Mateus.)

Uma única vez duvidei do que disseras por não ter acreditado teres visto no fundo dos olhos de alguém um mácula, como se te fosse possível ver a alma, e por momentos perdi a fé em ti, julgando-te excedendo as competências conhecidas, duvidas que alinharam rugas na minha testa e te apressaste a desvanecer deixando-me ver, no oftalmoscópio, o fundo do olho de um paciente, e lá estava, a oval amarelada da Mácula, dissipando a minha duvida e garantindo a tua redenção, enquanto eu, maravilhado, ajuizava do tanto que não sabia e te guindava a um altar mais alto, perdão, digo patamar, confundes-me com a tua sabedoria de santa milagreira num altar que construi para ti, que me espantas desde a visão num jardim, rodeada de crianças de bibe, pasmando todos com a tua roda, o teu Disco de Newton, girando estonteante, e ficando tanto mais branco quanto mais depressa o giravas, ainda lembro tudo isso, o sol e o teu olhar meigo, a voz calma e timbrada avisando para os perigos que os nossos olhos corriam, e os cuidados a ter com eles, em especial evitar que nos enganem, sim eles, os nossos olhos, e que reparássemos no milagre do disco de Newton, parado, mostrando as lindas cores do arco íris, as mesmas que num outro milagre fazias sair fulgurantes de um prisma na tua mão, pelo que jamais te esqueci ou deixei de considerar e se agora teu aprendiz de feiticeiro devo-o a não mais ter abandonado a procura da verdade que me garantiste existir e desafiaste a descobrir.

Nunca foste para mim uma pedra no sapato, nem um espinho na carne, antes um argueiro no olho, forçando-me a ver e a ver claro até onde a mínima luz jamais estimularia um Bastonete, impeliste-me não só até ver a luz mas sobretudo que a procurasse com todos os Cones que a minha alma encerra e a paixão acicata.

Foste sempre um farol, um rumo, um caminho e um exemplo, e inda hoje procuro ver nos teus olhos, no fundo deles, com saudade e com carinho, a mesma meiguice e ternura que me marcaram o ritmo, a mesma acalmia que acomodou em mim a turbulência da juventude, a mesma confiança que me alimentou a esperança pelo tempo fora.

Sei que se te acabaram os milagres, e o teu olhar não alcançar mais que aquilo que o teu pensamento e as tuas lembranças autorizam, ainda uso a mesma água-de-colónia que me ofereceste naquele Natal em que comecei a barbear-me. Não será um beijinho na testa a fazer que me recordes, nem a mão no teu ombro agora tão frágil reconfortando-te, mas acredito que ao ouvires-me recordarás aquele Lusitano X Juventude em que juntos gritámos e alimentámos uma tarde de discussão, hoje como então:

-Amiga, isto de jogar é como viver, olho por olho…

- Dente por dente ! Respondeste tu minha cacaruça.

Saúde minha cacaruça, aguenta-te, e longa vida, adoro-te.

 

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