O Herege

 

O Herege

Português

Na aldeia de Romão, no norte de portugal vivia Jacinto. Era um homem da terra. 

Trabalhava durante todo o dia no campo para poder dar de comer aos seus 3 filhos. Eulália, João e Francisco. 

Erguia sempre cedo, por volta das cinco da manhã saía de casa.

Preparava a carroça e ia buscar o cavalo, que vagarosamente tirava do estábulo - Anda lá rapaz!! O animal dócil, lá se deixava ir, e num relinchar abafado seguia firme. 

Anda lá!! Tsh... anda maluco! 

De madrugada na aldeia o barulho da carroça anunciava sempre a sua saída. - Olha lá vai o Jacinto! Coitado, morreu-lhe o pai há tão pouco tempo e não pára de trabalhar este rapaz!

 

A noite e a geada acompanham-no num frenesim de estrelas turvas e penetram no verde da erva e no castanho da terra em gotículas ínfimas. É Janeiro...de cara dócil e rosada, Jacinto segue caminho. 

-Anda rapaz...anda! O cavalo não desgruda da sua elegância. Ouve-se o barulho das ferraduras a bater na terra, num som abafado e magnânimo. 

 

Quando chega ao campo, prende o bicho, libera as ferramentas e senta-se na mesma pedra de sempre. Abre a merendeira que trás no carro e come um bocado de pão que mistura com vinho e enquanto come contempla as oliveiras e as estrelas.

- Este ano temos menos azeitona, meu pai! Fala sozinho- Este ano está mais fraco, não sei como vou por comida que chegue naquela casa. Mas não há-de ser nada que estas mãos não resolvam. 

Esfrega as suas mãos ásperas e gretadas no focinho do cavalo, que relincha baixinho, soltando do bafo vapor quente.

 

O dia ainda é longo...

 

- Eulália põe a mesa! - Diga mãe? - Põe a mesa que o teu pai está a chegar.

No regresso a casa já toda a aldeia está acordada.

- Boa tarde Ti Jacinto! Então e essa azeitona?

- Este ano temos pouca sorte. A geada queima-nos tudo, haja melhor sorte com o vinho. 

 

Todos os dias este ritual se repetia.

 

Na manhã do dia seguinte Jacinto estava a sair de casa e quando tirava o animal do estábulo, ouve um gemido...- Quem anda aí?

O animal está agitado, mas ainda assim pode ouvir-se o barulho de mais alguém a mover-se na palha... 

- Quem anda aí?

 

Vai ao carro buscar o sacho e volta a ir em direcção ao estábulo. - Ah, ladrão! Não falas?

 

Mas Jacinto era um homem de paz. - Calma senhor, calma! - Calma? Quem és tu? - Calma senhor, eu não roubei nada! - Que fazes aqui? - Estava a passar por Romão, tenho frio e não tenho onde ficar... eu queria sair antes de alguém vir, mas não contava com ninguém cá tão cedo! Não roubei nada, pode ver!

 

A Jacinto, que era um homem de bem logo lhe brilharam os olhos. 

- Pega, come isto. Deu-lhe do seu pão e do seu vinho. - Vai-te embora. 

- Senhor. Vai para as suas terras agora de manhã? Deixe-me ajudá-lo hoje, sou-lhe grato.

 

Seguem os dois caminho.

 

- Mas então e bateram-te por causa disso? - Sim o padre da aldeia diz que eu tenho o diabo no corpo... bateram-me trinta vezes numa cruz no cimo do monte de Jalães. Diz que aquele sítio é sagrado e que não há diabo nenhum que lá pare.

 

- Mas e porque diabo eles dizem isso? - Não sei senhor, já caí duas vezes na igreja e espumei-me da boca. Dizem que eu não posso lá entrar e trago má sorte à aldeia. Estou fugido... este ano as colheitas estão mais fracas e culparam-me a mim.

Jacinto olha para as suas oliveiras. - Mas e porque fugiste? - É a dor senhor, batiam-me muito. O Sovina deu-me com a enxada nas costas, ainda tenho cá a marca sabe? Morreu-lhe o filho e diz que fui eu que agoirei. E o Sr. padre não me pode ver, agoura baixinho quando eu passo. Eu se ficava em Jalães eles matavam-me, matavam-me senhor!

 

- Maria, hoje põe a mesa para mais um! E mete uma manta no escano da sala!

 

Depois de jantar e beber três taças e meia de bom vinho o rapaz cobre-se com a manta e olha para o lume, contempla-o, e sorrindo fecha os olhos. Adormece a ouvir os estoiros da lenha que o embalam para o sono. Sorri, fecha os olhos e dorme como uma criança.
Jacinto saiu pela madrugada e cumpre o mesmo ritual de todos os dias, mas a meio da manhã ouve alguém a chamar por ele em desespero. É então que pára de castigar a terra e fica atento...

 

- Oh ti Jacinto! Ti Jacinto...  Era o Eurico - Venha cá Ti Jacinto! Que desgraça! Já se foi o Chico de Jalães! - O quê rapaz? - Sim, foi-se ontem à noite, diz que caiu ao lume em sua casa, afligiu-se e não se conseguiu por mais de pé! 

- Ah que desgraça!! Que me dizes Eurico? Mas ninguém o acudiu lá em casa? - Eu quando saí ainda estava no escano a dormir!!
 - A sua Maria diz que estava na cama a dormir, quando lá foi já pouco pôde fazer. Que aflição a do rapaz! Não tem sorte nenhuma. Parece que é coisa  do diabo!!!

 

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