Percorrer os traços de Ramalho Ortigão é revisitar uma das vozes mais críticas, mordazes e lúcidas da literatura portuguesa do século XIX. Figura proeminente do realismo português, Ramalho traçou, com pena afiada e espírito arguto, o retrato de uma sociedade em transição, marcada por contradições entre o progresso e a tradição, entre o idealismo romântico e a crueza da realidade.
Jornalista, escritor e polemista, foi sobretudo através das "Farpas", escritas inicialmente em parceria com Eça de Queirós e, mais tarde, a solo, que Ramalho Ortigão se afirmou como um observador atento e implacável da vida lisboeta e dos costumes nacionais. Nos seus textos, a sátira é arma e escudo: combate os vícios sociais, a hipocrisia burguesa, o provincianismo disfarçado de modernidade – ainda e sempre presente na sociedade portuguesa!. As suas palavras, longe de serem meros apontamentos de época, ressoam ainda hoje pela actualidade das questões que levanta – educação, política, moralidade, cultura.
Ramalho escrevia com uma elegância que não disfarçava a dureza da crítica. A sua prosa, rica, elaborada e muitas vezes irónica, é reveladora de um homem culto, apaixonado pelo saber, mas também desiludido com os caminhos que Portugal parecia seguir – e continua a seguir. Foi defensor do progresso, mas não de um progresso cego; admirador da Europa, mas atento ao perigo da sua cópia superficial; patriota, mas crítico das ilusões nacionalistas.
Nos seus traços literários há sempre uma tensão entre o desejo de reformar e o desencanto com a resistência à mudança. Talvez por isso, ler Ramalho Ortigão seja também um exercício de autoconhecimento colectivo – um espelho onde Portugal se viu, se vê, e, por vezes, se recusa a ver.
Passaram já 110 anos sobre a sua morte (27/09/1915) e evocá-lo é mais do que recordar um nome nas páginas da história literária. É reconhecer a importância da crítica como acto cívico, da escrita como forma de intervenção e da lucidez como virtude rara. Ramalho Ortigão viveu a inquietação de quem nunca se conformou com a mediocridade, e a esperança – ainda que céptica – de que a inteligência e o humor pudessem, afinal, mudar o mundo.
Dulce Rodrigues
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