O edifício tinha uma fachada linda, estava à data pintado num cambiante de azul, ora claro ora escuro, e que jogava muito bem, tinha janelas amplas, um jardim na entrada e, glória das glórias vidros duplos o que, na esturrina do verão mais que um alívio era um consolo para todos nós.
Estava instalada a repartição, resultara de um dos felizes primeiros actos de descentralização da administração pública, já lá vão uns trinta anos, é hoje um serviço autónomo dentro da tutela. Eu chefiava uma secção cujos gabinetes, todos virados a nascente, nos garantiam calma, bem-estar e paz desde a manhã, uma paz maravilhosa que durava todo o dia.
Adianto mais alguns pormenores, não se ganhava mal e, como hoje, ninguém fazia nada a não ser preocupar-se gerindo a carreira, digo estar atento às promoções, porque de resto nada que aparecesse era urgente e, sendo-o, deixaria logo de o ser.
Mas em dias não elas eram belicosas e difíceis de aturar, qualquer que fosse o espaço, nesses dias apertado para dúzia e meia de mulheres. Eu limitava-me a gerir os ânimos, a manter a calma, a ouvir muito e falar pouco, sempre ouvira dizer, e ainda se diz, “o calado é o melhor “.
Ela entrara já enfurecida e nem me ouviu, nunca me ouviam sempre que calhava dizer-lhes quanto àquele item em particular nenhum poder ou influência eu ter, nada podia fazer, nenhuma capacidade de manobra me restava ou me estava atribuída, reservada ou em sobra. Para bom entendedor meia conversa bastaria, para a Glória, tal como para outras, nem a conversa inteira chegava, simplesmente nem queriam ouvir o que repetidamente lhes dizia, ou por simplesmente não crerem ou não quererem ouvir o que de mim ouviam.
Quanto a isso cada uma delas não era em nada diferente das outras, gesticulavam, berravam, gritavam, glorificavam a sua posição, o seu pensamento, a sua razão e, não me ouvindo, ficavam contudo contentes por as ter ouvido, esperançosas, expectantes, e algumas, nem interessa quais delas nem quantas, crentes, embevecidas, agradecidas e resolvidas a recompensarem-me por tamanha atenção e consideração dedicadas, dispostas a mostrar ou demonstrar-me logo ali a sua gratidão, outras mais logo, outras mais tarde, outras estamo-nos a entender, temos que nos ver, ninguém precisa saber, sei que me estás a perceber.
E percebia, oh se percebia, e com umas era logo ali a questão dirimida, com outras era mais logo, mais tarde ou conforme combinado, entendamo-nos, estão a perceber ? Só vos peço que ficais calados, ninguém precisa saber, ou perceber, estamos entendidos ? Eu devia andar pelos quarenta e já então era bonito, era mesmo muito bonito, ainda hoje o sou, vocês aquelas que me conhecem testemunharão certamente em meu favor. Garanto que não havia pressa, nem pressão, não havia sedução, nem submissão, nem ascensão ou ascendente, nem eu era nem nunca fui prepotente, oportunista, abusador e muito menos violador, tomara eu que não me violem a mim.
A haver alguma coisa seria apenas glorificação, e nisso fui sempre tão democrata quão liberal, se uma era a outra era-o igualmente, não por questões de fé ou de devoção mas de igualdade de tratamento, não de género, nesses tempos era assim, era essa a cartilha, e chefe era chefe, o respeitinho sempre foi muito bonitinho, agora é que é tudo tu cá tu lá, maricas para aqui maricas para acolá, nessa época eu era mais o turismo, foram os anos das grandes passeatas turísticas, da Madeira, dos Açores, Marrocos, Itália, Alemanha, Suíça, França, Espanha, Andorra, e a porra dos pinhais e eucaliptais, conhecia todos como a palma da minha mão, inda hoje gosto do cheiro a pinho e a mentol, gosto de ouvir a passarada, de a observar, ter na mão, criei pombos, canários, pintassilgos, periquitos, por essa época vinham comer-me à mão.
Tirando a criação da passarada eu nada mais fazia, em boa verdade nada pedia e nada conseguia, porém, mau grado não mexer uma palha os resultados apareciam, talvez por intervenção divina, minha é que não, e então, promoção hoje promoção amanhã toda a gente andava contente, feliz e reconhecidamente agradecida. Quanto mais eu dizia que não, que nada tinha a ver com aquilo maiores os agradecimentos, ganhei mesmo fama de modesto e, mais que isso, de homem honesto. E naturalmente uma legião cada vez maior de fãs…
Melhor que eu só a Santa da Ladeira, cheguei a pensar em distribuir umas pagelas e montar um consultório de vidente, “Professor Humbertão, cura todos os males e todos os nãos”, imaginam a cena, ou não ?
Inda hoje a Glória crê, isso mesmo me diz sempre que me vê, ser eu o santo milagreiro que lhe meteu na mão tanto dinheiro, não se cansando de alardear a boa reforma que tem a qual não se priva de atirar à cara de outras com desdém. Claro que fico contente e, por uma última vez nego a minha culpa ou participação na sua tão feliz situação,
- Meu maroto, sempre tão modesto, a humildade fica-te mal Baião, para mim serás sempre o meu santo milagreiro, o meu Baiãozinho.
e no entretanto apresenta-me às noras, aos genros, à catrefa de netas e netos. Eu sorrio, passo-lhes a mão pelas cabeças, afago-lhes os cabelos, sorrio e conformo-me com a minha sina.
Depois vejo as cenas do me too no telejornal e volto a sorrir, varro o ecrã com o olhar em busca de noras e genros, netos e netas, famílias felizes, gente com carreiras, gente de recheadas carteiras, gente no topo, e volto a sorrir.
A mim já tudo me faz rir, se não rir pelo menos sorrir, e não há já modo de me convencerem a levar de novo esta gente a sério, nem estas gentes nem este mundo …
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