JÁ CÁ NÃO VIVE NINGUÉM?, de Mónica Gomes
Não sou ninguém. Em mim existe uma mansão, vejo-a. Estás a vê-la? Não tentes fugir, bem sei que a vês. Convido-te a entrar. Não tenhas medo, ainda cá não vive ninguém. Deixar-te-ia escolher o sítio, mas proponho Belém. Estás numa mansão em Belém. Aproxima-te dela. Está vazia, ainda. Pergunto-te se ainda continuará vazia quando eu acabar de falar? Mas não pensemos nisso, ainda agora vou começar…
Afonso vivia aqui sozinho com a neta Luísa Tânia, nesta mansão antiga. Um dia, inesperadamente começou a ter suores estranhos e muito calor. A neta chamou o Dr. Ângelo, um médico conhecido da família, que anunciou que Afonso fora picado por um mosquito e morreria se não fosse tratado a tempo. Explicou também que a única cura conhecida era uma mezinha natural, feita com a raiz de uma planta só existente na cidade livre. Afonso não tinha o tempo a que a espera, resultante da possível encomenda e envio da raiz, obrigaria. A neta disponibilizou-se de imediato para ir à cidade livre de Burgo, no lado ocidental, apesar da oposição do avô, que sempre a considerou demasiado jovem para fazer o que quer que fosse, viajar sozinha com apenas dezasseis anos teria enlouquecido o velho se este não estivesse para morrer. Contudo, Luísa Tânia decidiu-se a ir mesmo contra a vontade de Afonso, procurando salvar-lhe a vida. Os dias passam e Afonso espera agora o regresso da neta todos os dias nesta janela. Olha para a janela! Sim, tu. Observa-a. Fixa-a. Luísa Tânia não volta, não há meio de voltar. Afonso é o único ser vivo a habitar esta mansão antiga. Acabou de acordar e está a procurar forças para arrastar o corpo cansado e febril até às margens do rio. O rio Tejo. O rio que fica ali, vês? Ali mesmo. Afonso acabou de se afogar agarrado à foto da neta. Por vezes as pessoas são ridículas, outras fazem-nas ridículas. Luísa Tânia regressa neste momento. Estás a vê-la? Olha, da varanda fixa o corpo do avô a boiar no rio. Dr. Ângelo acabou de aparecer, a magana da Luísa Tânia chamou-o com a notícia de que arranjara as raízes. Vês? Eu disse. O médico está a agarrá-la, parece-me que ela se tenta precipitar da varanda para o rio. Empurra-o. Empurra-o e ouve-se o embate de qualquer coisa na água. Não ouviste o embater do corpo na água? Foi o acto de desespero para se libertar dos braços de Ângelo. Foi um acidente. Eu sei e tu também o sabes. Está assustada e dirige-se à mansão, ao seu quarto, ao seu guarda-roupa. O armário abre-se. As malas. Vês a moça a fazer as malas? Prepara-se para partir, encontra-se só, já nada a prende a este lugar. O médico aparece, sujo e molhado, nas escadas exteriores à mansão. Luísa Tânia dirige-se para lá com as malas. O vento sopra e os pássaros chilreoam. Agarrou-a! Agarrou-a. Não parece que a pretenda salvar novamente. Continua a agarrá-la. Não sentes esta corrente de ar intensa? Olha a janela, ali está a janela onde outrora um avô esperou uma neta, uma cortina branca esvoaça ao vento. Presta atenção à cortina, vês aquela forma? É uma cara. Sim, tenho a certeza que é uma cara. Aproxima-te. Mais. É a cara de Ângelo. Asfixiado. Está a ser asfixiado. Ouve-se o estrebuchar ao longe. Parou, acabou de morrer. A cortina está a esvoaçar. Quem se atrever a espreitar através da janela o interior do quarto verá Luísa Tânia a soltar a cortina. Um corpo cai no chão). Ouviste isto? O corpo de Ângelo acabou de ser lançado. A queda de um corpo morto é sem dúvida perturbadora. Onde é que ela vai? Afasta-se. Uma saia branca. Sempre gostei de saias brancas. O que é aquilo? Sangue. Há sangue na sua saia. Será sangue inocente? Será dela? Sim, o sangue é dela. O rio cerca a casa, a água torna-se turva, já não se vê o fundo.
*Esta obra encontra-se registada na Inspeção-geral das Atividades Cultuais, estando protegida à luz do código do Direito de autor.
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