Germano: o pastor
Os campos estavam cobertos por um manto de cristais que tornava a paisagem bela. Era bela e ameaçadora. As temperaturas tinham descido vários graus abaixo de zero naquela e nas outras noites antecedentes. Nos locais onde o sol não brilhava, a acumulação do gelo mais parecia neve. As margens do rio também começavam a ficar vidradas. Lentamente tudo ia ficando mais gelado e os dias a fio de nevoeiro só complicavam tudo. Parecia que tudo congelava.
Nos lares onde havia lareira, fogareiros, aquecimento central, o desconforto do frio de inverno era menos sentido. No entanto, naquela aldeia no recôndito monte entre vales e falésias de fragas, nem todos tinham o mesmo conforto e só saíam à rua para comprar pão ou ir às compras à cidade mais próxima. Os agricultores dedicavam-se às tarefas agrícolas: apanhar a azeitona, tratar das couves e das rabas para vender nas feiras antes do Natal, cortar lenha para a lareira. O esforço físico enganava o frio e animava os homens.
Germano, um velho de setenta e oito anos, com o tempo escrito nas rugas do rosto e no cabelo nevado, costumava sair todas as manhãs bem cedo de seu casarão.
Apesar da idade avançada, da sua altura magra, os seus gestos e voz eram ágeis a chamar o pequeno rebanho que tinha. Em tempos tivera rebanhos de quinhentas ou mais ovelhas, um verdadeiro orgulho do pastor, que era invejado na aldeia. Hoje tinha apenas seis, que podiam chegar a nove ou dez na primavera. “ Para matar o vício de andar pelos campos com as suas ovelhas”, dizia. Porém mais parecia que o dizia para si mesmo, como que para se convencer. O que ele gostava era de um rebanho grande, com ovelhas lanudas e um bom macho para as cobrir, para ter muitos cordeirinhos para os vender por altura da Páscoa.
A mulher e os filhos eram contra essas deambulações pelos montes de fragas e ravinas perigosas. Já tinham conseguido por duas vezes que acabasse com os rebanhos, tratasse da saúde e ficasse em casa. Todavia esses interregnos eram curtos. A voz do pastor que tinha dentro de si não se aquietava enquanto não voltasse a ter as suas ovelhas, mesmo que poucas.
- O que é que estou aqui a fazer em casa? Aqui vou morrer mais depressa. Ai isso é tão limpinho como o trigo. – argumentava.
- Pai, já andou anos suficientes com o gado. Agora tem de tomar conta de si. – disse a filha Ermelinda.- Já não tem as pernas que tinha.
- Não ouviste o que o médico te disse? – perguntou a esposa Etelvina. – Tens de parar e tomar conta da tua saúde.
- Tenho saúde para dar e vender. Quem dera a muitos novos ter a saúde que eu tenho.
- Mas tens de parar, homem.
- Assim ando mais entretido e agora já não vou para longe, mulher.
- E os lobos, pai? Ainda ontem viram um.
- Nunca tive medo dos lobos. Não é agora que vou ter. E tenho o Tosco para me guardar o gado. É um bom cão de guarda transmontano.
Estas conversas repetiam-se noite após noite nos últimos tempos. Ermelinda e Etelvina temiam pelo bem-estar de Germano que era muito teimoso. Era tão teimoso que chegava sempre a casa à noite. Não adiantava insistir que chegasse antes de o sol se pôr.
- Homem – dizia-lhe Etelvina – andaste por lá tanto tempo, que já tinha o coração na boca. Vende as ovelhas.
- Sim, pai. Venda-as agora e compra depois outras noutra altura. Já se olhou ao espelho? Tem o nariz queimado do frio e as mãos cheias de frieiras. Temos de tratar disso.
- Já me acontecia isso quando era novo. Sempre houve invernos rigorosos. E este não é mais do que os desse tempo. Faço por lá umas fogueiras e aqueço-me.
- Estamos quase no Natal. E não vejo maneira de o tempo mudar.
Tanto lhe encheram os ouvidos com estes queixumes que Germano acabou por vender as ovelhas, numa feira.
Os dias passavam devagar na aldeia. Parecia que quase tudo estagnara. Quase não se via ninguém e não era só por causa do frio. A emigração tinha levado a maior parte da população para terras de França. Outros tinham-se fixado na Invicta ou noutras cidades mais distantes depois de terem saído daquela pequena aldeia, agora com os seus vinte habitantes. Eram quase todos velhos e muitos eram viúvas. Havia apenas dois ou três casais de meia-idade e que trabalhavam no campo e na cidade mais próxima, a cinco quilómetros.
Germano passava a maior parte dos dias em casa, à lareira. Lá ia dar de comer aos cães de caça do filho e ao macho e à mula. Etelvina fazia a comida para os cães em grandes panelões de ferro. Germano ia à horta apanhar couves, nabal e erva para o macho e a mula. À tarde mudava-os da loja e punha-os a pastar na cortinha bem perto de casa quando o tempo o permitia.
Depois de tratar dos animais, lavava-se no lavatório da casa de banho para tomar o pequeno-almoço. Entretanto, Etelvina enchera uma malga com a sopa do dia anterior bem quentinha, acompanhada por um naco de pão centeio e um copo de vinho tinto. Etelvina comia mais tarde em conjunto com a filha, depois de tratarem das galinhas e dos patos. Bebiam café com leite e comiam bola de ovos ou pão de centeio com margarina. Germano sempre fora habituado a comer sopa ou sopas de azeite. Sempre fora assim, mesmo na casa dos pais. A vida de pastor era dura e ele nunca tinha sido outra coisa na vida, nem tivera o sonho de emigrar. Nunca deixaria os pais nem o país. Além de que o casamento mais ou menos “arranjado” fora tanto do seu agrado como obviamente dos pais. Casar numa família rica dera-lhe o passaporte para a liberdade, da qual nunca usufruiu. Sempre fizera as vontades à Etelvina e aos seus sogros. Levar o seu rebanho a pastar pelos montes todos os dias do ano era a suma liberdade. Que outros tomassem conta da casa. Ele era um homem e um homem trabalhador e honrado e livre para sentir os elementos da natureza no seu corpo. Assim é que era feliz.
Os dias passaram, o frio continuou, a neve caiu e o Natal chegou. Germano continuava magro, mas com melhor aspeto. O rosto deixara de ter manchas encarnadas, as mãos continuavam com as manchas do tempo mas sem frieiras. Era seu sonho que a pouca família que tinha se reunisse na Consoada. Convidou o irmão, a cunhada e a sobrinha da mulher, a irmã e os sobrinhos que moravam ali na aldeia e esperou que o filho, a nora e dois netos, que moravam na cidade vizinha, também aceitassem o convite. Reconhecia que seria difícil reunir estes membros da família porque nem todos se davam, o que o entristecia muitíssimo. Ainda assim, tudo fez para que honrassem o convite.
Na noite de consoada a cozinha foi invadida por aromas gastronómicos quentes, acres, doces, salgados e reconfortantes. Cheirava a couve portuguesa, batatas e rabas cozidas, bacalhau e polvo cozidos, a bolos de bacalhau, a rabanadas, a aletria, a filhoses e canela, a bolo-rei. Tudo tinha sido confecionado ao longo do dia para a noite ser perfeita.
Enquanto a azáfama tomava conta da cozinha, Germano decidiu ajudar os poucos habitantes, a maior parte familiares distantes, a arranjar lenha para acenderem a fogueira de Natal, uma tradição de anos, onde os homens passariam parte da noite a beber vinho tinto dos garrafões e a contar histórias, anedotas e a comentar o que se estava a passar na aldeia e no país. Todos expressavam a sua opinião e tudo era permitido, sobretudo os palavrões e praguejar.
Para alegria de Germano, todos compareceram para a Consoada levando os presentes embrulhados em papéis coloridos com laçarotes dourados e prateados e até com laçarotes em tecido, que colocaram debaixo da Árvore de Natal, do lado oposto ao que o Presépio ocupava.
A mesa já estava posta e apesar de simples mantinha-se a tradição. A mesa retangular e comprida estava coberta com uma toalha branca com motivos natalícios com os guardanapos a condizer. O serviço de mesa também tinha um apontamento natalício. Os copos de cristal tinham saído da cristaleira para esta noite que se esperava especial. O que realmente veio a acontecer.
A ceia de Natal foi animada, a conversa e as histórias enchiam a sala, a alegria e as gargalhadas estavam bem presentes naquela noite familiar. À meia-noite abriram-se os presentes e bebeu-se o champanhe. A tradição transmontana mantinha-se para felicidade de todos. Parecia que Germano tinha rejuvenescido por estar rodeado por aqueles que amava. Seus olhos eram duas estrelas e seu coração batia feliz.
Pouco tempo depois alguns convidados voltaram para suas casas. Só os filhos, nora e netos ficaram. Naquela mesma noite, enquanto se comemorava o nascimento de Jesus, Germano fechava os olhos e partia deste mundo com um sorriso nos lábios.
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