Alice mudara-se para a cidade assim que se tinha tornado maior de idade. “Tenho sonhos, sabes?”, disse aos pais, tentando justificar o porquê de se ir embora. Naquela aldeia engolida pelas montanhas, desligada do mundo, não sentia que os conseguisse atingir. A única coisa que ligava as montanhas à cidade eram as casuais caravanas que passavam para efeitos mercantis. Sim, caravanas, o que sempre tinha ouvido dizer é que os caminhos eram demasiado agrestes para serem percorridos por carros. Não sabia se era verdade ou não, mas também nunca tinha tido particular curiosidade em descobrir. Aquilo que sempre teve particularidade em descobrir foi uma e uma só coisa. “Lembra-te Alice, não te metas com gatos pretos! Trazem má sorte e roubam a felicidade das pessoas! Por algum motivo não sonham com estrelas!”, dizia-lhe sempre a mãe. Uma vez encontrou um, numa caminhada pelas montanhas. Pequenino, frágil, não devia ter mais que dois meses, estava sozinho e miava para quem passava. Os mais velhos olhavam-no de soslaio mas com algum medo ao mesmo tempo, temendo que o gato se aproximasse deles e afetasse o seu futuro. Ela deixou todos passarem-lhe à frente e, quando ninguém estava a ver, aproximou-se do gato. Este, meigo, correspondeu aos carinhos ronronando. Tirou o casaco, envolveu-o e levou-o com ela. Toda a caminhada procedeu sem problemas e em casa decidiu revelar à família o que trazia com ela. A mãe foi a mais chocada e ordenou-a imediatamente que o colocasse nas montanhas, explicando-lhe com alguma violência que estava a desrespeitar não só a família como toda a aldeia. Naquela noite Alice dormiu na montanha, envolta com o seu pequeno amigo numa manta. Na manhã seguinte, nem um sinal do pequeno gato preto. Procurou por ele todo o dia, mas não o encontrou, acabando assim por voltar para casa mais triste do que aquilo que tinha saído. Assim como a todas as crianças, a tristeza acabou por se dissipar e dias depois Alice voltara à alegria habitual. Mas nunca se esquecera do pequeno gato preto.
Tornara-se jornalista, como sempre quis. “Quero conhecer o mundo, quero conhecer a verdade do mundo!”, dizia quando lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse na escola. Fazia parte do restrito grupo de pessoas de entravam e saíam do trabalho com um sorriso nos lábios. Naquele dia, no dia quinze de novembro de dois mil e onze, o seu sorriso tornara-se ainda mais genuíno. Solteira, sem filhos, vivia sozinha num pequeno apartamento a quinze minutos da redação e naquele dia chovia torrencialmente, não que isso lhe incomodasse, achava o cair da chuva uma banda sonora agradável, mas andar com guarda-chuva era algo que a incomodava um pouco e não tinha a opção de usar uma corta-vento ou casaco que lhe permitisse usar um capuz, visto que não abdicava de usar o seu cabelo apanhado e o capuz incomodava-a ainda mais que o guarda-chuva nessa situação, portanto optava pela que lhe incomodava menos. A verdade é que tinha alguma vaidade para o seu cabelo, usando-o apanhado e deixando apenas alguns fios de cabelo soltos na frente, e aparentemente estava a fazer algo bem, visto que pretendentes nunca lhe tinham faltado. Apesar desse dilema, eram as suas caminhas favoritas. Andava calmamente, ao contrário das outras pessoas, que corriam de um lado para o outro, como se a chuva estivesse a queima-las, apreciava a banda sonora que a chuva lhe proporcionava e ia pensando na bebida quente que iria fazer quando chegasse a casa. Gostava das pequenas coisas da vida, como um bom livro, um bom álbum de música ou bom filme. Naquele dia, durante a sua caminhada, já perto de casa, Alice sentiu que estava a ter um déjà vu. Junto a um poste de eletricidade um pequeno e frágil gato preto miava e tentava abrigar-se da torrencial chuva. Não conseguia ver diferença entre aquele e o que tinha encontrado nas montanhas, tendo ambos em comum uma mancha branca na pata frontal esquerda. Alice não pensou duas vezes e abrigou o gato junto a si, segurando o guarda-chuva por baixo do braço e usando um pano que trazia na sua mala para limpar o pequeno. “Pelo menos desta vez não tenho ninguém para me impedir.”, pensara.
Em casa, colocou o gato em cima do sofá e deixou este explorar enquanto trocara de roupa. O gato saltitara alegremente de um lado para o outro, explorando e cheirando as divisões da casa, acabando por se esconder num qualquer canto. Sabia que era um comportamento natural dos gatos, portanto decidiu não procurar por ele e deixa-lo ambientar-se, o que não demorou muito a acontecer. De noite, o gajo saltara-lhe para a cama e aninhara-se junto a ela. “Willy. É isso que te vou chamar. Willy.”, disse, ao que o gato respondeu voltando-se de barriga para o ar. “É verdade que não sonhas com estrelas?” perguntou, sem obter resposta. Alice adormeceu e naquela noite sonhou que estava nas montanhas, a deleitar-se com a visão do céu estrelado. Era das poucas coisas que tinha saudades.
Os anos passaram e Alice e Willy eram como melhores amigos que se conheciam desde nascença. Era como se, por ordem superior, estivessem destinados a estar juntos. Sempre que saía conseguia ouvir um miar algo triste, antes de entrar para o elevador. Partia-lhe o coração, mas tinha de ser, as contas não se pagavam sozinhas. Quando voltava, era garantido que Willy estava à sua espera à porta de casa, mal abria ele trepava-lhe a perna e ronronava. Quando Alice via filmes que a deixavam emocionadas e lhe caíam algumas lágrimas, Willy começava a miar, um miar que ela sempre entendeu como se ele estivesse a perguntar o porquê. Quando o filme era assustador e Willy percebia que Alice estava assustada, assanhava-se à televisão, mas rapidamente se acalmava quando ela se ria dele. Willy viveu acima da média para um gato, tendo vivido dezanove anos. Infelizmente, Alice apenas viveu dezoito anos após o encontro entre ambos. Durante o ano seguinte Willy tornou-se um gato sossegado e isolado, vivendo na casa de um colega de trabalho de Alice até falecer. Alice falecera no dia cinco de março de dois mil e vinte e nove. Nesse dia, pela primeira vez, um gato preto sonhou com estrelas.
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Gatos pretos não sonham com estrelas
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