Gaspacho
Isto de os contos terem gente que não sabemos quem são, não é dado.
Por isso e antes do mais, vou-vos apresentar o Alberto da Horta. Este homem de mãos roídas pelo tempo e pela vida, filho de Salvador o "Vermelho", homem grande de tudo e do mais belo palmo de terra que havia e há na Aldeia do Sempre, serão os personagens principais deste conto que vos vou contar.
No tempo em que o macambuzio nos roía a vida, por dentro e por fora, Salvador o "Vermelho" nunca se vergou. Não se sabe bem porque motivo, mas na Aldeia do Sempre, amontoado de casas muito seletivas e de pouca gente, mas gente unida pela necessidade moral de não aceitar o que para quase todos era inevitável, teve a sorte de ali nascer, crescer e se fazer homem.
Este contexto, aparentemente sem relevante significado, acabou por ser fundamental para a sua postura enquanto homem. Não se sabe se terá sido pelo facto de na Aldeia do Sempre haver as melhores hortas de que há memória por estas paragens, ou pela vital necessidade de nelas se conseguir cultivar tudo o que os filhos dos homens precisam para por esta vida poderem passar. O que é certo, é que o tempo passado a ver as coisas crescer, permitiu pensar, nem que de cócoras fosse a apanhar erva, mas este pensamento livre, moldou a vontade, a vontade de não permitir e nunca vergar.
Mas, para além de tudo o que se já disse, nestas hortas especiais, cresciam também debaixo das pedras, dentro dos balceiros das silvas ou nas paredes dos poços, umas folhas de jornal, que fazia não só sonhar, mas, e principalmente transformar esses sonhos em vida.
Este à parte foi só para vos enquadrar, principalmente no tempo, porque tempos desses já não cremos mais, embora para isso alguma coisa tenhamos mesmo que fazer.
Sendo o fim, o saber fazer um bom gaspacho, por algum lado teremos que começar e não há melhor começo que o princípio.
No tempo da fartura, do sol e da água enquanto a há nos poços, tudo o que a terra receber dá em troca e destas terras muito se exige e não se exige só por exigir, exige-se pela mais profunda das necessidades. Exigem os homens, as galinhas, os coelhos e o porco, só um, porque para tantos e mais os que lá em casa estão, esta terra já não poderia mais.
Nesse tempo da abundância escondida, a imaginação para tapar a fome tinha descanso e foi precisamente num momento iluminado desses, de imaginação adormecida, que Salvador o "Vermelho", do sol, do Benfica e da convicção mais pura, resolveu experimentar à sombra e por esquecimento do farnel, uma nova forma nova de disfarçar a fome.
Nessa manhã de exceção, porque fresca estava, Salvador foi para a horta, Alberto pirralho de dedo no nariz foi com o pai. Este era um dia especial, é que Salvador, fez hoje uma coisa que nunca antes se tinha atrevido a fazer. Não trabalhou. Nos dias de hoje parece mentira, mas no tal tempo do macambuzio, o trabalho era todos os dias, de sol a sol e não trabalhar só por dois motivos, ou porque entretanto nos deixamos desanimar por este mundo ao ponte de já cá não fazermos falta, ou porque a cama nos agarrou a ela e dela não nos conseguíamos livrar. A emoção foi tanta, que quer Salvador, quer o então pirralho Alberto se esqueceram do farnel que a D. Genoveva lhes tinha preparado.
Não sendo só esta horta dada ao cultivo, mas ainda a outras atividades proibidas, as das conversas escondidas à sombra da macieira junto ao poço, ou a existência das tais pedras das quais brotavam essas folhas de jornal, tornava este sítio o mais aprazível que Salvador e Alberto poderiam encontrar. Era pois frequente, ou melhor, com a frequência possível, poder encontra-los aqui entretidos.
Um lugar destes com tantas boas coisas para dar e receber, a companhia era certa, vinda de todos os lugares. Assim sendo e como o receber é entendido por estas paragens como uma arte, havia que preparar este lugar para as mais inesperadas situações. O poço que tinha um recanto para mais facilmente se aceder à água, era pois o esconderijo ideal que permitia guardar alguns insignificantes tesouros, fundamentais para tornar sempre qualquer momento oportuno. Numa caixa de madeira encolhida junto a uma pedra grande e bem resguardada, tinha lá dentro uma garrafa de azeite e vinagre, um punhado de sal e sempre umas côdeas de pão dos dias anteriores, não fosse o diabo tece-las e que o Alberto por vezes se entretinha a roer. Esta caixa era por ventura a coisa mais importante por estes lugares, por isso ninguém nela se atrevia a mexer, quanto mais a descobrir.
Nas hortas, com exceção das tais ervas que se dão aos grilos, o que se resumia ao poder comer-se a cru, era relativamente pouco. Aliás a D. Genoveva, que por estes sítios se via pouco, porque outros afazeres tinha, controlava mesmo assim tudo o que por ali crescia, das cebolas aos alhos, passando pelas beringelas (coisa moderna e recente por estas paragens) e até as batatas escondidas na terra, tudo ao pormenor. Dizia-se lá em casa, porque estas coisas só em casa se dizem, que apontava tudo num caderno que escondia debaixo das saias e que só o "Vermelho" tinha autorização para ver, de vez em quando.
Ora, sem dúvida que este foi o primeiro problema com que estas duas almas se depararam, o controlo sempre presente da senhora do caderno, um porque ninguém desrespeita uma mãe e o outro porque gostava de ver o tal caderno e já sabia que uma Genoveva zangada é sinónimo de saia fechada!
Mas há coisas que se conseguem sempre desviar, umas porque crescem mais depressa do que as podemos contar e as outras, porque para além das galinhas, dos coelhos e do porco, há também por estas paragens uns bichos malinos que nos trincavam o aconchego do inverno, e esses ninguém controlava, nem a D. Genoveva.
Foi assim que Alberto o "Vermelho" colheu o que por lá tinha, uma mão cheia de tomate, dois pimentos, um vermelho como ele e outro verde, uma cebolita, uma cabeça de alhos das mais mirrados e um pepino torcido que por lá andava. Não nos podemos esquecer, que ao lado do poço, sítio fresco e de encontros escondidos, havia uns canteiros dedicados aos mimos, onde se podiam encontrar as ervas boas e cheirosas de boa companhia.
Como o momento era solene e ainda por cima tinha de convencer o pirralho que o repasto seria gostoso, houve que enaltecer o ato. Nada melhor que dar um certo aparato à preparação deste prato. Sentou-se à sombra da macieira junto ao poço, chamou o Alberto para a sua beira, puxou do púcaro de barro e pôs-se a migar. Este velho hábito de migar couves para as galinhas, parece que não, mas é como se tivesse sido um intensivo curso de cozinha, que como só se resumiu a isso, pouco mais sabia fazer. Por isso migou para dentro do púcaro, como se para as galinhas se tratasse, tudo o que recolheu. Temperou com o azeite, o vinagre, o sal e uma mão cheia de orégãos. Juntou-lhe depois a água fresca, da mina, foi o alberto que lha foi buscar a correr e o pão torcido pelo tempo, e mexeu, mexeu devagarinho, como se ciência houvesse para isso. Depois provou, calmamente e até gostou, retificou temperos, mais para parecer coisa mesmo apurada e autorizou o pirralho a provar.
O sorriso do Alberto disse tudo, deixou nesse preciso momento de ser pirralho e transformou-se no homem que hoje é, assim de repente, sem mais nada, com um simples gaspacho fresquinho, na companhia do pai e à sombra da tal macieira de onde escapavam histórias de contar ao ouvido.
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