Era uma paixão singular entre uma frágil flor e um possante lampião. Um vivia de dia. Outro de noite. Margarida e Lumio.
Tão distantes. Para nós humanos, três metros são apenas três passos. Para aqueles dois seres pregados ao chão, até um metro seria caminhar em direcção ao infinito. Eram como o céu e o mar. Uma hipérbole matemática. Duas linhas que embora próximas nunca se tocam.
Apesar de afastados existia qualquer coisa neles que os mantinha juntos. Uma paixão escondida desde que aquele jardim se implantou. É curioso perceber como algo como um simples olhar, mesmo indirecto, pode fazer com que dois seres se enamorem.
-D. Abelha, pode polonizar aquele lampião com o meu pó? – inquiria Margarida sempre que se aproximava um insecto daqueles.
E a abelha lá cumpria o seu dever de agradar às flores.
Existiam apenas dois momentos em que se encaravam. A alvorada, quando o primeiro raiar do sol brilhava sobre a crosta terrestre. E o pôr-do-sol, quando este se afogava no mar.
Era Outono. Todas as plantas do jardim prestavam vassalagem ao Rei Vento. Todas excepto Margarida, claro. A nossa pequena flor mantinha-se impune aos impostos do rei, encarando-o de frente. Tudo isto para poder manter o olhar fixo naquele lampião.
Findava a tarde. Os pais passeavam as crianças. A flor estava prestes a cerrar os olhos.
-Papá, anda atrás de mim.
O lampião preparava os circuitos. E as crianças passeavam os cães.
-Busca benurom, busca!
O sol vestia o pijama quando o inexprimível aconteceu. Numa mesma rotina prazenteira os pais corriam atrás das crianças que passeavam os cães. Estes farejavam, encontravam e escavavam.
Lumio abriu os olhos e o seu olhar cruzou-se com o de Margarida.
Farejavam, encontravam e escavavam.
Margarida libertava o último pólen do dia.
Farejavam, encontravam e escavavam.
Escavavam... a terra... e uma flor. Num acontecimento banal e furtuito Margarida foi atirada pelo ar. A frágil planta resplandeceu sob os últimos raios do sol. Num voo de pinguim aterrou junto do lampião.
Embora já na estação das folhas, a flor ainda mantinha as cores primaveris. Até àquele momento. Corou em tons castanho-avermelhados. A proximidade a Lumio envergonhava-a.
Estavam encostados. Um gigante e uma anã. Tocaram-se pela primeira vez. A corrente eléctrica e a seiva. O verde e o cinzento.
-Olá.
Em resposta Lumio tremulava. Era a única maneira de comunicar. Acender e desligar a sua lâmpada.
De repente a morte atravessou os seus corpos. Um arrepio. Um aviso de algo indesejável. Um pensamento uniu as suas mentes. Só nesse instante reflectiram. Como pode uma flor sobreviver sem raízes?
Apenas se via o sol no seu espelho. Restavam apenas algumas horas até que Margarida findasse. Tentavam desesperadamente uma solução. Uma cura para a única doença que cura todas as outras: a morte. Nem o amor é tão forte.
Como um marinheiro que se lança ao mar. Como uma andorinha que parte. Também a flor partiria.
Nas poucas horas que se sucederam mantiveram-se unidos, esperando o último cair de pétala. E assim aconteceu. O cupido fora demasiado cruel.
Durante essa estação o céu esteve de luto. Chorava todos os dias com Lumio. Nunca se via um raiar de sol. As nuvens encobriam qualquer rasgo de felicidade. Isto permitia ao lampião manter-se de olho na flor durante longas horas por dia.
Passaram-se meses e os tapetes coloridos estavam de volta. Era Primavera. Tempo em que as cores renascem das cinzas do branco inverno.
-Então grandalhão? – perguntavam-lhe algumas andorinhas que voltavam para fazer nele os ninhos – Ainda de luto?
Nesses momentos o lampião apagava-se para abafar os comentários. Estava prestes a desistir. Determinado a desligar as suas luzes para sempre.
Olhou uma última vez o esqueleto da pequena flor, agora submersa na terra suja. O local onde durante horas esteve Margarida permanecia adormecido... até ao momento. A aurora irrompeu num foco iluminando o chão. Contrastando com todo aquele monocromatismo, começava a crescer um caule verde e delgado.
-O Inverno foi duro, mas consegui suportá-lo.
Lumio reconheceu a voz.
-O calor dos teus circuitos manteve as minhas raízes quentes. Os raios da primavera foram o meu trampolim para a superfície.
Agora tinha a certeza. Era a voz da sua flor.
Estava na hora de se desligar, mas não importava. Dentro de algumas horas poderia vê-la de novo.
A partir desse dia, os dois fruíram cada aurora e cada pôr-do-sol. Enraizavam os circuitos em todos os derradeiros ou preambulares segundos de luz diurna.
Talvez um dia se escute a história da flor que faz a própria fotossíntese.
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