O regresso a casa dos meus pais normalmente é acompanhado pelo cansaço da semana e do desejo de voltar a ver velhas amizades. O significado de poder ir de fim de semana descansar e que Lisboa não me dará o conforto que exijo a mim próprio. Ficar, só com a condição de estar contigo mas desta vez não. Não. Vou para casa sim, mas quero refugiar-me no meu quarto, santuário revigorador das múltiplas tristezas e desgostos que o ser Humano tem na sua maior experiência chamada Vida. Tal castelo reforçado por vitórias passadas será assaltado novamente e novamente sem esperança de vitória, ou de, pelo menos, que o Amanhã seja diferente.
O ritual da tua voz a aparecer na escuridão da minha mente assombrando os meus pensamentos chamando-me monstro é o aríete que consegue romper os meus portões, sendo a imagem do teu abandono da minha cama o golpe final que arrasa a minha cidadela, antes invulnerável.
É tarde quando consigo finalmente sair de Lisboa e por isso o Expresso leva as luzes desligadas. Consigo dormir em qualquer sítio com qualquer luminosidade, mas a falta física do teu ser impede-me de ter tal luxo. Chegado a casa só o orgulho transcendente dos meus pais no seu filho pródigo consegue repôr alguma alegria perdida. Só o amor de um pai e/ou de uma mãe consegue aliviar até o pior dos desgostos. Monstro ou não, o olhar deles revela logo que não posso ser essa pessoa descrita por alguns. A tristeza no ar emanada pela minha aura abatida levanta as perguntas do costume. "Está tudo bem? Estão tão magro! Andas muito nervoso". A fuga desas perguntas é fácil e chegado ao meu quarto, é hora de me deitar e fechar-me nos meus pensamentos ou melhor, no meu silêncio, pois até esses já me deixaram sozinho. Tanto vazio e melancolia impelem a distrair-me com qualquer coisa. Ligo o computador e perco-me no Youtube e no Facebook. Um para mostrar-me que certas músicas fazem sentido outro para me enganar da solidão que me acompanha.
A solidão imposta é atentada por um convite aliciante: um jantar de amigos. E ai de que não apareça! Sei que a ameaça é real, pois amigos destes tem a particularidade de não nos deixarem estar assim em baixo e arrancam-nos mesmo da nossa bolha de depressão caso necessário. A fadiga é imensa mas a oportunidade de voltar a estar com pessoas de tal gabarito só por si convence-me a aceitar. Procuro no garboso bar do meu pai algo adequado para levar. Acabo por decidir levar o comum Beirão sem medo de experienciar pela primeira vez a desilusão em olhos que há uns bons anos atrás me desafiavam a fazer todo o tipo de loucuras. É em honra a esses bons tempos e à vossa companhia que sigo a passos largos para o jantar. Só o avistamento da casa já me desperta a curiosidade de como vai hoje acabar a noite.
Dados os abraços firmes e os beijos enternecedores, há que fazer a atualização das nossas vidas. Novidades, aventuras e desventuras ou apenas a rotina do dia a dia. Só alguém merecedor do título de amigo é que pergunta sempre com o mesmo interesse perpétuo o que tenho feito e por onde tenho andado, sabendo sempre de antemão, que resposta receberá em troca. O meu modo de vida dá-me a experienciar uma liberdade diferente mas também uma prisão singular, que inclui muitas vezes a repetição de diálogos à muito sabidos. Tanta troca de palavras necessita de néctar adequado para lubrificar a garganta e reparo com satisfação que o que trouxe há muito que foi devidamente apreciado. A conversa é deveras excelente e flui naturalmente, mas se o corpo consegue ter algum sucesso em fugir de ti, já a mente é incapaz, levando-me a estar cada vez mais ausente de mim próprio e as vozes à minha volta a ficarem cada vez mais distantes. As minhas pupilas dilatam-se e vejo sem ligar a minha visão a ficar desfocada e distante. Uma voz pronunciada desperta-me deste estado catatónico e incita o grupo a ir para outro sítio, desta vez com o objetivo de dançar. A mudança é bem-vinda e pomo-nos logo a a caminho. Sento-me atrás à esquerda junto à janela para poder pensar um pouco mais em ti enquanto seguimos viagem. Não tenho tempo para muitos pensamentos. A passagem por um cruzamento com casas repletas de vegetação em excesso não permite ver uns faróis que se aproximam demasiado depressa senão quase no momento do impacto. A brutalidade do abalrroamento na estrutura do carro e nos nossos corpos é demasiada e o nosso carro é deslocadado até ao passeio. Sinto sangue a escorregar pela cabeça abaixo e a minha camisa a ficar cada vez mais ensopada em resultado. Tento tirar o cinto e ajudar os meus amigos mas as imensas dores consequentes forçam-me a estar quieto. Tento ser teimoso, mas a revelação do meu corpo dizendo que também ele sofreu com o impacto por serem poucas as suas partes que não gritam de dor leva a melhor. Os olhos inundados de sangue já não conseguem revelar muito mas ainda logram a descriminar uns corpos a tentarem-se mexer. Não há nada pior que sentirmo-nos presos e impotentes restando-nos esperar. Ouço uma voz a explicar onde estamos e a agradecer menos nervosa porque a ajuda vem a caminho.
A fuga de sangue do meu corpo começa a fazer-se sentir cada vez mais, ficando cada vez mais fraco e zonzo à medida que o tempo passa e a ajuda não vem. Sinto-me a morrer aos poucos, a ficar cada vez mais ausente de vida. Não sei se é o delírio a aparecer mas vejo-te ao pé de mim. Trazes o último vestido que te ofereci e dizes que tens medo que seja demasiado fashion para ti, como se isso fosse possível. Tímida como sempre. Enquanto levo as minhas mãos à tua cara e descanso os teus medos, reparo com deleite que trazes o teu relógio favorito e uma das tuas últimas pulseiras. Riu-me para mim escondendo de ti a lembrança dos nossos primeiros encontros em que vinhas de braços nus e agora mostras evidências só visíveis para nós do tempo que partilhamos juntos. A vida é boa quando partilhada com a melhor das companhias e é esse o pensamento que me faz voltar a mim e querer ligar-te uma última vez. A custo, tiro o telemóvel do bolso e encosto-o à minha cara sentindo o seu calor por ter estado junto ao meu corpo. Enquanto ouço o som da chamada sou invadido por mil e uma perguntas que me interrogam sobre o que te direi pela última vez e sobretudo o que me dirás primeiro. Não tenho tempo para pensar pois a voz do outro lado desperta todos os meus sentidos. Perguntas o que se passa meio preocupa meio irada por te telefonar a esta hora da noite. Sei que é perigoso falar contigo a esta hora e do infinito de palavras existentes neste mundo escolho a mais sincera que te define para começar a nossa conversa. More. Acho que comecei bem. O destino não concorda comigo e desliga-me o telemóvel. Estou sem bateria. Estou sozinho e estou sem ti. Já não te vejo ao pé de mim e fecho os olhos. Acho que não se passou muito tempo até receber a escuridão do desmaio e perder-me nela...
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