Destinos

 

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Ela dava beijos mais altos que o céu.

Ele demorava na chegada.

Cruzaram-se as vidas no descanso do sol, numa rua deserta.

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            A cidade já tinha iniciado o sono profundo desde que o sol fez as suas malas e voltou a ser estrela pequena no céu. Nesse dia a lua prometia libertar loucuras pendentes, deliciosas pétalas vagueiam nas surpresas do destino que espera fazer crescer os que nunca procuram por ele. Ventos amigáveis sopram entre os mais livres divertindo-se nas suas roupas e nos seus cabelos e, aos que não provaram o gosto da liberdade levita no doce abraço com um estranho. A noite assim se constrói com os mais arrojados perfumes e poucos são os que sonham com ela. Nesta cidade há mais loucos que se apaixonam pelo seu encanto, mas mesmo eles não sabem que ela pinta o rio de cor-de-laranja quando as estrelas são pouco finitas. Esta mesma cidade respira dos seus jardins suspensos nos telhados velhos e degradados pela história dos seus tempos, pela história dos seus poetas.

            Da janela de qualquer quarto, ouvia-se o desejo frio de uma voz rouca, embora feminina como cor-de-rosa, a pedir por fogo aceso. O seu socorro demorou a chegar, mas veio numa onda de beijos e trocas de corpo. É, quando pedimos em voz alta que se vê as flores a crescer dentro de água poluída. Se usarmos o silêncio da boca e a ausência de olhares nas luzes apagadas, nunca chegamos a nadar em rios de flores mágicas.

            Margarita descia agora a rua acompanhada com a inutilidade de um fumo, como uma desculpa qualquer, e com um desconhecido que lhe deu chamas. Nas conversas havia um silêncio calmo e nos olhos desejos insaciados. Eduardo vinha mais deserto. Trazia poemas escondidos pelo corpo como se das estrelas, Deus percebesse os seus anseios por mais luz. Permaneceu misterioso a caminhar com os passos dela enquanto ela fazia por continuar o inesperado. As vidas perdem as cores quando falamos nelas. Mais vale não saber pintar. Vestiam, os dois, máscaras semelhantes às suas figuras sem saberem de que é feito os ossos. A lua proporciona destes encontros sem aviso prévio, se houvesse alerta nunca haveria quem ficasse para trás para apanhar os restos dos solitários. No fim da noite sabia bem dizer que o amor é bonito.

            Dessa noite, ficaram palavras de suor e loucura escritas na parede do quarto dela. Dessa manha, ficou a promessa do início de um sonho.

 

            O amor não é mais que um jogo de oportunidades. As apostas encaminham-se em banhos de incertezas, a luta é conjunta contra um adversário sempre mais astuto que qualquer dos amantes, porque não está apaixonado, lutamos sempre contra o tempo, para nunca sermos um ser sozinho. E o tempo espera pela nossa demora em palavras.

            Em gestos delicados, Margarita esboça os desenhos da sua rotina matinal enquanto outros olhos mais atentos lhe seguravam os lábios.

            - Tinhas palavras escondidas – disse ela- mas, consegui vê-las. Mal iniciaste o teu primeiro sonho, toquei-as, troquei-as e elas construíram-se em pirâmides de poemas. Não resisti em transformá-las em música. Espero que não te importes…

            - Ontem também desvendei o teu corpo. Tal como desbravaste as minhas palavras, eu cantei os teus sinais, as tuas cicatrizes, as tuas marcas. Cravei tudo no meu corpo pra que fosse como teu: um excesso de imperfeição. Não me importo quando a troca é justa.

            - Se ontem me descobriste e fizeste na tua pele a minha tatuagem, porque é que continuas a olhar o meu corpo? Já não deve haver mais musica a sair dele…

             - Quero conhecer o fim da canção.

            A palavra fim ressoou em eco omnipresente dentro da cabeça pouco ocupada de Margarita. O frio entranhou-se na fragilidade de quem tem medo do escuro e de fantasmas.

- Não fales de fim. Lembra sempre a morte, e nunca deves falar do que não conheces.

- A morte encanta a tua vida, tu é que como vives não notas. São os mortos que, apaixonados por quem ainda veste um corpo, deixam em cima da tua cama a roupa, embalam a tua almofada e fecham a porta á saída. Quem é que sopra o vento enquanto passeias na rua? É apenas uma desculpa para eles poderem sentir cabelos perfumados.

Fez-se silencio pesado sobre as quentes chávenas de café. Um convite para sair de casa, Eduardo aceitou-o, despedindo-se com palavras que prometem uma nova chegada. A porta fechou-se.

Quando decidiu arrumar os restos de prazer do quarto, encontrou um fio castanho-escuro na almofada. Sem ter razão específica, só seguindo o pensamento corporal não o tirou de lá. Hoje irá adormecer em sonhos com uma parte de Eduardo na sua cama, com uma parte do seu fim a limpar-lhe os sustos do inconsciente. Havia naquele corpo poucos restos de fim agarrados, mas pelo tom da música também poucos eram os inícios que venciam. Talvez essa era a razão de um corpo mais esqueleto que pele.

Somos opostos, mesmo nas nossas entranhas. Nunca sabemos a razão do nosso tempo mas, também não queremos fazer parte dele ou que ele se incorpore em nós. Fugimos das horas acrescentando mais horas ao mundo que vimos ser feito para sobrevivermos. E só assim somos capazes de pensar em felicidade.

Margarita nunca vive durante a estadia solar. A estrela é um indicador de adormecimento profundo, só a lua lhe desperta os sentidos, só ela é que a permite sobreviver. Por isso, depois de limpar a casa e o corpo, deixa-se embalar em músicas de rádio e livros que levam palavras e experiencias não experienciadas á sua vida, á sua boca. Os dias são assim para quem gosta imaginar que os objectos, que são nossos, falam das suas e nossas histórias. Os dias são assim para quem bebe demais. Quando já a rua é iluminada por grandes luzes amareladas escondidas em candeeiros sujos, que não deixam ver os traços de quem por ela deambula, Margarita sai de casa, desnudada de corpo e alma. Ela vai confessando aos telhados mais suspensos que os seus pés a amargura que recheia a sua vida, que nada é senão morte. As opccões nunca são nossas são da necessidade que os corpos querem ter. Não nos perguntam porque as palavras custam mais que as roupas.

 Nunca é bom estar sozinha, muito menos quando se pede para curar essa solidão por dinheiro em troca. Só faz com que a solidão seja cronica. Todos a conhecem como um ser não humano, incapaz de sentir qualquer chuva. Mas ela sente demasiado, ela nem usa guarda-chuva. Para além disso ela tem um gosto peculiar com os inícios das coisas. Ela gosta de viver a noite com a esperança de ver nascer o sol e gosta de adormecer para começar a sonhar. Ela interessa-se pelos olhares que não voam, pelas palavas que ficaram por dizer no primeiro dia, das maneiras envergonhadas de lançar um beijo. Mais do que tudo, ela queria ser a única que não precisava de sobreviver, embora não conhecesse o que é viver.

 Embelezava as ruas da cidade na madrugada, cheias da sua solidão e com poucas oportunidades de abrir janelas. A forma como a natureza respondia á aurora, as flores que se abriam a um novo sol até serem vistas pelos viajantes do mundo. Enquanto esperava por um caso de sorte, lembrou-se do seu início com Eduardo. Ele, na sua fraca figura desajeitada por natureza com um toque de elegância sublime, a aproximar-se como quem tivesse descoberto um trevo de quarto folhas num jardim intensamente verde. Sempre sem palavras na boca, como quem estava certo que não queria ficar sozinho na chuva. Pensou também na sua despedida sem palavras, sem gestos. Ainda bem que ele as traz no corpo. Ele é uma espécie de labirinto misterioso. Ao entrar na sua profundidade quase fatal, nunca se descobre uma forma de sair dele. Só resta perder-se no seu toque prolongado dos seus beijos. Ela tinha de lhe introduzir o mar á sua boca. Lá, não há morte nem fim. O mar é o reencontro do início das vidas, a água faz-nos corpo e as ondas fazem-nos a alma. E ele nunca para de subir ao céu. Os pensamentos, quando surgem, são capazes de transbordar do corpo e fazer com que este siga outros movimentos. E há ainda quem diga que o corpo não pensa…

Margarita vai em direcção á única esplanada que se distingue na pouca paisagem citadina, mais cinzenta que suja. O destino pegou no casaco e foi ter com ela.

Os dois sofriam agora da doença do silêncio. Um buraco para onde caem as faltas de palavras, as ausências de assuntos e um frio físico no corpo que não deixa pronunciar nem o cinzento lume da cidade. O medicamento foi ela que o fez.

- Devíamos falar sobre o mar… Quero ouvir o teu poema sobre algo que não conhece fim.

- Alguma vez ficaste a ouvi-lo?

- Várias vezes… adoro ver e ouvir as ondas a rebentarem na costa enquanto eu, pequena naquela grandiosidade, acalmo os anseios de não saber quem sou. E fico forte, ergo mais muralhas de chumbo. Essa força faz-me a coragem. Preenche o corpo como um som de um pássaro livre do destino. Voa em mim, sem melodias de dor nem compaixão. E uma aguia fica presente no pensamento tornando o dia mais leve de passar. Sou mais humana quando de mim saí o proibido das cidades.

- O mar conhece ainda mais morte que eu e eles juntos. Ele move-se com a força da falta de vida que te faz sentir a plenitude do céu no peito. Quando uma onda rebenta, um peixe morre feliz por se juntar ao que é teu. Ele leva os homens incertos para ilhas desertas e isoladas de amor, onde vagueiam até fazerem sentido, até saberem que a vida é a sua morte.

- És um infeliz.

- Sou o único homem que conhece a verdade e que vive nessa realidade.

- Não, tu é um triste que se contenta em desmanchar a beleza da vida.

- Um dia vou-te mostrar o fim do mar. Vais ver como ele sonha em saudades nuas, vazio das vidas que não o completam.

- Nunca irei sentir o mar morto…

- Ao menos, vemos a mesma chama de prazer a sair dele e a correr nas nossas peles. Ao menos, eu não digo nunca.

- Olha, já começou a chover.

A noite obriga-se a repetir quando ficou longe da imperfeição do inesperado. Ela sonha em tornar o acaso num caso provável de se refletir em instantes fotográficos. Como não conhece o tempo, não teme na demora. Joga em estratégia, manipulando as fases do desejo e as leis do amor. Durante o dia, a noite rói-se de inveja.

A cama está completamente desfeita. Desaromou dois corações de aço e eles tornaram-se agora mais de algodão. Margarita permanece em sonhos fantásticos da lua, enquanto Eduardo já levantado sonha em perder-se em beijos com ela. Em horas longas ele desvendava os mistérios daquele corpo, que sofre da idade e do uso, e daquela voz que não fala. Se ela conseguisse sentir o seu desejo, nunca mais voltaria a ver o mar.

Ainda a observava quando os seus olhos despertaram nos dele. Ela jurou não dizer mais nunca.

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O tempo viajou até a cidade entrar em festa de louvor por algo que não lhe pertence, nem nunca irá pertencer. As ruas exibem freneticamente a sua elegância nocturna e, com os seus ornamentais arranjos florais plastificados insiste em não cair no engano da solidão até ser uma madrugada satisfeita. Nestes dias festivos, Margarita promete-se a não sobreviver, deixar de cansar o corpo com quem lhe dá preço. Solta os cabelos e arranja-se, já está na hora de alimentar o corpo. Vai com Eduardo pelos dedos, numa infantilidade própria de quem acaba de descobrir os segredos da paixão. Ele vai com um sorriso que a sua máscara não conhece.

Ainda meios adormecidos pelos poucos sonhos que voaram da almofada, fazem o pedido de comida sempre em demasia para o estomago, e de bebida que escorrega para a desobediência do corpo. Enquanto se come, poupa-se as palavras que saíram mais interessantes quando já não houver outros interesses. É o mesmo com a música.

Depois de saciados, seguiram o desfile dos que se vestiam de loucos só por uma noite e dos verdadeiros loucos que aproveitaram a oportunidade de manifestação. Os primeiros loucos são mais dados á inexperiência dos sentidos. Só conhecem os sintomas do prazer no corpo numa única noite por ano. Os outros tem mais educação quando se fala em liberdade. Eles nem pertenciam aos loucos, nem vestiam a loucura mas, quando a multidão promove uma fogueira parva é aquele que não se sente livre em dançar á sua volta. O corpo lucrou com essa alegria fascinante de cada um se ter transformado em sonho lúcido. O cansaço sobe devagar, entranha-se no corpo como se fosse um familiar a desejar boa noite em abraços em nuvem frágil, lembrando que o corpo também gosta de morrer por instantes.

Eduardo tem mais vontade de escrever. Os dedos são aliciados à corrente da tinta pintada sobre os novos cadernos. Deambula em novos sonhos, mais esperançosos com o nascimento das estrelas. E num instante, cobre as paredes nuas do quarto da amante com os seus novos devaneios. Os dedos são a ferramenta, as palavras a arma. Fica tão agarrado ao vício de completar o que é branco que nem repara que Margarita dança a valsa com os cabelos dele cobrindo a madeira com as suas sombras. Os dois ocupavam as mãos desta forma, distraídos do silêncio da cidade e o erguer das loucuras que ontem tinham feito fotografias. Há hora que a lua se instala no quadro da janela, o corpo de Eduardo já está cansado de se reproduzir em poemas e as mãos de Margarita procuram uma promessa mais séria que uma simples valsa

- Já tenho saudades de fazer parte de ti – disse Eduardo.

Voltaram os dois a cair na repetição da mesma noite até ser dia de novo. Talvez por falta de sorte talvez, por já não fazer sentido ainda não serem chão.

Os corpos instalaram-se em casa sem saberem que prisioneiros ficaram. Bebem do tempo sem se perderem nos enganos da sua teia. Desencontraram.se com a vontade de fugir das pernas, dos abraços, dos sonhos, dos medos. São mais que pequenas, as palavras, não existem nas vozes nem na partilha no entanto, domem ainda em sorrisos por saberem que venceram à solidão e entraram no paraíso dos olhares infinitos. As vidas tornaram-se vida. Quando se cruzaram, não sabiam mas, os mundos diferentes no tempo criaram a nova religião do amor. E, o amor ficou sem palavras.

- O meu corpo não conhece vida desde que te conheci.- disse ela como se soltasse uma oração. – No entanto, toda eu vive em plenitude de satisfação, não há nenhum membro que não se sinta vivo com o teu toque. Eu não consigo, duvido se algum dia conseguirei, compreender as tuas palavras, os teus passos. Elas são incapacitadas de me falar, embora brilhem nos meus olhos como água cristalina. Por favor, nunca me peças uma despedida porque já não saberia o que era acordar sem as percorrer, sem que elas me acariciassem os lábios com a estranheza que lhes é própria. Quero fazer mapa de tudo o que tu vês, quero ver o mar que pronuncias.

- Margarita, eu não quero ir ver o mar contigo, meu amor. Um dia, mais tarde, podemos ir visitá-lo, mas, terei de me afastar da tua inocência e deixar de a amar como se já não fizesse parte de ti, só parte da tua história. Talvez hoje seja um dia para destruir a cidade.

- Então vamos. Vamos por um fim à beleza da sua festa.

 

Saíram de casa ainda mais infantis que as suas roupas e começaram a tecer o fio das suas promessas. Os efeitos ficaram caídos entre os dedos dos apaixonados e, em vez de pertencerem à cidade deserta, começaram a ser mais um pedaço do corpo deste dia, desta manhã pouco iluminada pelos restos lunares. Vagueavam pelas ruas roubando a pouca vida colorida que ela tanto se esforçou por desenhar. Soltavam risos altos quando nem um nem outro conheciam a forma de fazer tombar as paredes sem janelas, quando estavam demasiado parvos mesmo que se falasse em amor. Das ruínas ficou um rasto de destruição fotográfica que gravaram num quadro pouco rico em razão. Brincavam em sonhos, brincavam como crianças que não sabem chorar, desconhecidos à razão dos pensamentos que, agora pouco suspiram.

 

Correm os dois até à lua, quando o sol já lhes abraçou o pouco de vida que eles não querem fazer crescer. E, é assim que a rotina suicida-se em desespero ao tenta entrar nos hábitos quando estes são ateados com a chama de paixão. Assim não se perdem interesses ou lágrimas, assim permanecemos sempre transparentes aos silenciosos, ninguém foge quando não se sente ainda em casa.

Voltaram para casa para catalogar toda a alvorada. Penduraram restos de imagens na parede do quarto e no tecto reservaram os típicos fios tradicionais, caiam em movimentos ondulantes ao vento. O quarto encheu-se de um espirito celebrativo por razões específicas (e essas, podem ser as melhores). Eles também se celebram em mais corpo menos sonhos, por entre os lençóis-casa. Ela jurava partilhar o fim com ele, com a própria realidade. Percebeu que morta já vivia antes de saber o que era a plenitude de um beijo de Eduardo, por isso, a vida só pode ser isso, esperar a morte com quem a mais conhece. Eduardo fragilizava em cada vez que os desenhos eram feitos em fios de cabelos na sua harmonia plena no quadro do olhar, até ele se arranjar e brincar com eles até lhe ajeitarem a cara. Penteia-se e uma parte selvagem voa até ao chão e é fitada por Eduardo que a guardava na pele, junto às palavras, agora mais sensíveis à luz da vida. E as fotografias ainda o mostram, ali vive-se na maravilha do que ainda está por conhecer.

Lavamos o corpo quando não nos deixam sentir a pele. Os espaços que nos abrigam sofrem do mesmo, e o responsável é o que se declama por seu rei. Proclama a obrigação se lhe pertencer e respirar dos seus sonhos mais reais e mais irreais, até deixar de sonhar e esquecer que o tempo não saí dos dedos. E, no entanto, o rei vive em lágrimas de culpa.

Pelas auroras cinzentas refrescamos o passado nas varandas, preso bem preso, para não dissiparmos a memória para o vento. E as varandas protegem os nossos medos, receando a condenação à solidão. Quando o sol já não enfraquece o corpo, os caçadores de lua fazem luz nas pernas brincando com as suas sombras em ondulações até começarem o sonho da noite.

Por entre os calores esfriados da passagem do tempo, eles dependiam do exclusivo de serem um. A janela estava sempre aberta, mas eles não a viam e já há muito que não cheiravam os perfumes da cidade à dar de beber às euforias diurnas ou nocturnas. Nada importava a não ser o que lhes pertencia aos gestos, as únicas quatro paredes que o amor sustinha. Fizeram planos de embelezamento para tonar o espaço o mais parecido com o novo ser que criaram. Trouxerem flores para construir um jardim. Umas compraram, outras plantaram. Todos os dias ficaram a dever às amarras do futuro do crescimento da nova natureza com fantasias dela alimentá-los nos desejos selvagens de continuarem estátuas por mais luas.

Hoje, a cidade reservou música, durante todos os passeios dos vagabundos que nela sonham ser terra. Logo ao despertar, Eduardo constrói um paraíso para disfrutar. Abre a janela na sua máxima plenitude e arrasta o colchão até ao céu azul, até sentir todas as notas a completarem o quarto de luz. A cidade tem esta brincadeira, de abraçar a música nos seus momentos mais extravagantes.

O quarto parecia uma sala de espectáculo de sombras chinesas a acompanhar Eduardo na sua dança de decoração. Margarita acorda nesta euforia espontânea. O momento inspirou-a para ficar a comtemplar o seu quarto a descobrir que as luzes do sol fazem crescer sonhos enquanto as danças plantam novos. Ele continuava a dançar. Cada passo forte dele vibrava no chão que suportava a loucura dela. E, ele dançava cada vez com mais força. Sempre dançou assim: ombros na terra, sem capacidade de distinguir o céu. Os movimentos são pouco movimentados para o alto, menos quando fogem para o tecto respirando agilmente o mundo a crescer. Nunca dançam juntos porque não sabem coordenar o corpo uma dança homogénea e, sobretudo porque os passos de Margarita são feitos de asas que nunca aterram nos braços das árvores nem na terra nem nas casas. Por isso, não sabem o que é a dança um do outro e recusam-se a entrar nos passos. A dança dele começa a destruir pouco a pouco as únicas paredes que Margarita podiam intitular como sendo dela desde do início. Ela assistia aos sons das rachas a abrirem sem soltar um único ruído, mesmo que por dentro as entranhas gritassem em dor e desespero por ver a casa a deixar de lhe pertencer. Eduardo continua frenético enquanto a pulsação vai saindo lentamente do corpo da sua amante até adormecer de novo quase sem respirar.

Eduardo começou a tecer uma linha de novas palavras. As antigas tinham de ser apagadas, afinal, o passado já não era suporte aos novos anseios, e ele só queria fazer novas máscaras. Mas, o passado dos seus dias a planear o fim do mundo, é mais pesado que o presente e, marcas na pele são irreversíveis como os devaneios da loucura que nos pertencem em formas circulares. Espera pelos olhos da sua amante para voltar a rever essas palavras e as troque por mais melodias, ou por sons mais melódicos. Algo mais leve para embelezar as marcas que o corpo carregava.

Estão na varanda a tomar café. Não usam roupas por não terem, as que costumam usar estão a secar ao sopro forte. Não é tarde, nem cedo, as horas ficaram imóveis. Margarita arruma os suores lavados nas gavetas cobertas pelo verde que cresceu no quarto e deitou-se cansada de não conhecer mais do fim dos mortos. A sua cara está coberta de rugas de plenitude rasa, ela é mais feliz por contar as novas marcas e ver nelas o sonho realizado. Contudo, quando recebemos um amor singular no corpo, partilhamos das mesmas vontades e dos mesmos desgostos, assim nunca somos satisfeitos sem saber que o outro tem as mesmas sinais que nós. E ela sabe que Eduardo não muda. O mar sempre foi o teste das suas confianças, o início da partilha do futuro, e ela ainda não o tinha visto com os olhos de Eduardo e com tudo o que agora já pertence ao seu novo físico. De uma mulher desejada pelos deambulantes passou a ser uma mulher amada pela morte, embora ainda não a amasse.

 - Todas as vozes são as tuas. Todas as que me assombram a presença de saber que não existo no mundo que fiz nascer antes da vida te mostrar. Eu ouço-as, em todo o corpo, em todos os outros corpos, e não ao compreendo por que as palavras não falam do mesmo amor. Elas entraram na minha experiência, agora são parte da minha incerteza.

- Meu amor, as tuas palavras são as minhas novas palavras.- disse Eduardo com a entoação de um homem certo.

- Então porque nunca mais me falaste em morrer?

- Amanhã levo-te ao mar e falaremos na nova linguagem, seja ela qual for. A morte talvez ainda lá resida, porque os meus olhos já pouco a cruzam.

 

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Querido Eduardo,

                        Não podemos ser inteiros, se as flores por nós morrem. Quando sonhamos, podemos ser um, e esse é o único lugar onde podemos crescer. Não escrevo em amor, escrevo sobre nós.

                        Quando vi com o teu olhar a maravilha do teu mar, fiquei cega e nada vi senão o mar. Fui louca em alguma vez te pertencer e fala-se em loucura em toda a minha caneta. Enquanto te escrevo encontro o desejo de te ver no meu caminho. Agora, poderíamos ser crianças. A voar em sonhos e dançar em tapetes mágicos, ser feiticeiros e fadas, ser estrela no céu. Sofri da mesma loucura quando fugi.

                        No início, tu vinhas a dançar com o vento e a erguer o olhar para a minha figura de estátua, mas nunca me compraste. Não precisavas, não com esses olhos, nunca com as tuas palavras. Apaixonei-me. Apaixonei-me todas as horas, não sabia ser nada senão criança. Existimos os dois juntos na florida imaturidade e não fomos sábios do tempo. Tentámos ser uma casa com jardins e nem regávamos o corpo. As plantas morreram mais cedo que os votos, a casa nunca sofreu de um traço. É triste sermos reais e não inventar caminhos, mas é o que somos. Nunca ninguém foi feito de algodão. A nossa massa é tão pesada que nos obriga a ser vagabundos. Nós somos iguais aos outros, tu és feito do mesmo que eu, só que tens a habilidade de voar, ou tinhas.

                        Se não soubesses esconder as tuas palavras, todos te ouviam, todos te amavam com eu. Todos compunham músicas aos teus pequenos anseios. Podias ser o mestre que me desenhou. A História do mundo era reescrita pelos teus sonhos e coroavam-te rei. Talvez, nunca deixarias o teu corpo crescer nesse caminho. Mas se fosse essa a intenção, seria facilmente concretizada.

                        O teu amor foi o melhor e sempre será. Deixá-lo esquecer era destruir o que sou. Mas, não tenho o corpo para suportar a tua densidade por isso queria começar a vestir-me sem ti. Os dias foram os mais difíceis de passar, à noite tinha o nosso amor nos sonhos. A lua sempre me fez bem e continua a proteger-me dos meus medos de solidão. Não fiquei com mais nada na minha vida a não ser a tua memória. E, é o que basta para aquecer o frio do escuro.  

                        Não consigo, nem espero tentar, trocar os nossos beijos com outro alguém. Mesmo sendo irónico, não tenho mais imagem no pensamento para além do nosso cenário, no entanto, estou longe da ideia de te voltar a pertencer. É algo que é difícil tentar explicar-te seja qual for o meio. Para isso servem as palavras escritas, são infinitas e intocáveis.

                        Tenho saudades de te fazer labirinto e sentir que os teus olhos me cravam á demora de fazer o mesmo no meu corpo. Sempre adorei acordar e ser controlada pelo teu movimento, fazia-me acreditar que erámos os únicos a sorrir.

                        Espero que estas palavras te façam novas tatuagens quando a tua pele for mais livre de medos. Quando voltar não te vou ver. Encontrarei alguém, talvez com alguma marca tua. Serás sempre a minha memória, amo-te.

Com saudades, Margarita

 

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Beijo-te

Beijo-te

E não te vejo.            

                                   Sempre teu, Eduardo.

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