O pobre homem caminhara o dia inteiro sob o sol escaldante da caatinga, sozinho, por estradinhas ora de barro vermelho, ora de finíssima areia branca; estava, pois, quase morto de cansaço e fadiga. Por isso, deu graças a Deus quando avistou aquela casinha perdida no meio daquele deserto, e tratou de apressar o passo para chegar lá, antes que a noite caísse de vez.
Enquanto caminhava, observava, admirado, a grande quantidade de morcegos que esvoaçavam para lá e para cá, alguns passando bem rente a ele. Raimundo nunca tinha visto tanto morcego junto! Aquilo lhe pareceu coisa de mau agouro, e, apesar de ser um homem de bastante coragem, não deixou de sentir um ligeiro arrepio na espinha...
Então, para se distrair, começou a assobiar uma cançãozinha aprendida com o pai, no tempo em que ele, Raimundo, era apenas era um menininho inocente, que sonhava em um dia ir embora para o Sudeste, ganhar bastante dinheiro por lá, e voltar milionário, para matar a fome daquela gente pobre do sertão, que tanto precisava de ajuda!
A canção misturava-se ao barulho do cascalho, que estalava sob os seus chinelos carcomidos, e perdia-se para além da vegetação seca e retorcida, para além daqueles serrotes que mais pareciam montanhas-russas da morte, até diluir-se na enorme imensidão da noite...
...
Quando parou diante da casa, desvaneceu-se do coração de Raimundo toda e qualquer esperança de que ali pudesse residir alguém... A casa não passava de uma tapera velha, com o barro da taipa caindo em muitos lugares; a porta e a janela da frente haviam sido destruídas pelo cupim, deixando entrever o negrume que reinava no interior do casebre...
Pelo menos tem um teto, pensou Raimundo, e é disso que mais estou precisando nesse momento. Está bom demais! Vou pernoitar aqui mesmo e amanhã cedo sigo viagem...
E, sem mais delongas, entrou na choupana. Ficou um instante imóvel, para acostumar seus olhos à penumbra. Percebeu então que o casebre era composto por um único cômodo, e que estava vazio, exceto pelo que parecia serem cinco ou seis garrafas de vidro espalhadas num dos cantos... Nada mais!
Com um suspiro de alívio, Raimundo depôs no chão a cabaça d’água e o saco de estopa que carregava nas costas. Ali dentro do saco ia o seu “tesouro”, o grande motivo daquela viagem sem fim que ele empreendera há quase três dias...
Amanhã, tornou ele a pensar, amanhã tudo vai ser diferente. Quero dar esta alegria para os meus filhos, para a minha mulher, coitados, tão distantes agora... Mas, deixe estar! A nossa salvação está bem pertinho, já posso até sentir o cheiro da danada. Amanhã, com certeza, tudo estará diferente!
E, sentando-se ao lado do saco de estopa, chegou a dizer em voz alta:
– Pelo menos um sonho eu tinha que realizar nessa vida, né?... Pelo menos um!
E, assim dizendo, o viajante sorriu de peito aberto. Chegou mesmo a gargalhar, como há tempos não fazia. Estava confiante no futuro. O tempo de privações e tristezas finalmente estava chegando ao fim, e era isso o que importava, de verdade.
Num gesto mecânico, tirou o chapéu da cabeça e olhou através da porta. A noite caíra de vez. Os morcegos horrendos haviam dado lugar a milhões de estrelinhas cintilantes...
O céu nunca esteve tão bonito como hoje, pensou Raimundo. Nunca, nunca mesmo!
Ele ficou alguns minutos apreciando as estrelas, totalmente embevecido. Depois meteu a mão no bolso, retirou o pacote de fumo, e, guiando-se apenas pelo tato, fez o seu cigarro. Quando riscou o fósforo, a chama mostrou um rosto precocemente envelhecido, barba e cabelos por fazer, com vários fios grisalhos... Havia, no entanto, algo diferente ali: os olhos, outrora opacos, agora irradiavam um brilho especial, um brilho que certamente não era apenas o reflexo do brilho das estrelinhas lá no céu...
Acabado o cigarro, Raimundo pegou a cabaça, bebeu dois bons goles d’água e estirou-se no chão; logo estava ferrado no sono...
...
Raimundo desperta com a dor lancinante da mordida no ombro... Tenta se levantar, mas a criatura, dotada de uma força descomunal, imobiliza-o, enquanto aplica outras mordidas violentas no corpo do viajante.
Em desespero, Raimundo se lembra da faca na cintura. Com esforço sobre-humano, consegue puxá-la e espeta o zumbi na altura do peito. Enlouquecida, a visagem aplica-lhe uma mordida que arranca parte da orelha esquerda. Outra mordida o fere mortalmente no pescoço...
Em transe, Raimundo pensa na mulher, nos filhos, no saco ali ao lado e, reunindo suas últimas forças, empurra a fera de cima de si. Em segundos fica de pé, e, furioso, desce o sarrafo sobre o vulto caído ali no chão, cobrindo-o de facadas, até fazê-lo em pedaços...
Findo o massacre, Raimundo sente o corpo desfalecer... Então desaba no meio daquela carne putrefata, que, de certa forma, lhe amortece a queda e serve de travesseiro para um sono profundo e completamente sem sonhos...
...
Quando Raimundo acordou, o dia vinha clareando.
Sentou-se, esfregando os olhos.
O seu corpo todo doía, parecia que havia levado uma surra.
Mas sorriu ao avistar o saco de estopa.
– Meu tesouro! – disse ele.
Pôs-se de pé, ajeitou o saco e a cabaça d’água nas costas, o chapéu na cabeça e saiu do casebre.
Lá fora, lançou um olhar ao redor. Apenas aquela paisagem agreste, tão comum aos seus olhos de sertanejo calejado, de homem que é antes de tudo um forte.
Ao lado do casebre, avistou, com pesar, um monte de terra com uma cruz tosca feita de gravetos enfiada no topo.
A terra parecia ter sido remexida recentemente... Com certeza tinha sido obra de algum peba, famoso comedor de defunto daquelas paragens, ou de qualquer outro bichinho do mato.
O viajante benzeu-se, pensando em quem poderia estar enterrado ali...
Depois olhou para o nascente.
O sol, lá na frente, parecia uma gigantesca moeda de ouro.
Raimundo sorriu mais uma vez.
E, decidido, marchou a passos largos, larguíssimos, “naquela” direção...
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