“Odeio este trânsito” – dizia-me a minha mãe, com um rosto cansado.
Quando era mais pequena perguntei-lhe: “avó quero dar um beijo daqueles de cinema um dia”… E ela como se o tempo não passasse pelo relógio contou-me páginas de um diário não esquecido.
Nunca tinha esquecido as pinturas em tons de vermelhos, os espelhos que adornavam as paredes da sala, um tecto com luzes que iluminavam com força quem ali dançasse, evocando assim as cenas de dança, por quem todos esperavam.
Os tempos eram outros, mas contou-me que a orquestra estava a tocar o tango da vida dela, a melodia era certeira e viva e ela ia vestida com um enorme vestido de gala. Glamoroso, dourado, bordado a lantejoulas com uma rosa preta a prender atrás a cinta. Contou-me que o avô ficara triste, não a queria ver com nada negro, não estava de acordo com aquela noite evidentemente. O gesto mágico dele ter ido colher uma vermelha ao jardim do lado preencheu-lhe as medidas, era a cor do amor eterno, como o deles tinha sido abençoado. O avô tinha charme, era elegante, e pegou-lhe na mão para a levar à dança das suas vidas…
Em movimentos quase teatrais dançaram uma dança sedutora, romântica, no meio do salão. A avó contou-me que não conseguia ver ninguém, sentia-se fora do mundo, fora do espaço, ela não se sentia simplesmente. Existia o som, o ritmo a mexerem no ouvido, e o sentimento a fazer alarido no coração que batia descompassadamente.
A mão do avô segurava a cintura dela, as costas, arqueando a cada passo, simulando cair em seus braços. A cabeça parecia querer tocar o chão que os cabelos varriam. Levava o cabelo solto, ao contrário do apanhado que a bisavó lhe queria fazer, rodeado de ganchos espalhafatosos. O cabelo estava solto, grande, ondulado, escuro, e ela sentia-se mais segura assim. Sentiu-se conduzida por algo superior. O avô manejava-a como uma pena, levantava voo, ia ao céu e voltava em segundos. O que poderia querer mais?
De vez em quando, chegava-a de encontro ao seu peito, o ritmo marcava momentos de entrega, onde as costas da avó se apoiavam nos joelhos do avô… E, com o jeito de duas pessoas que se vão beijar, aproximavam-se, mas logo se afastavam, puxavam-se rapidamente, é a moda de um tango.
A música acabou, e eles continuaram no centro da pista. As luzes já não existiam, estava escuro, os olhos ficaram inflexíveis a tudo o resto! Sentiu a vida agarrada ao seu coração, apertando-o. Beijaram-se, e a sala tinha-se levantado em aplausos! Os olhares de todas as pessoas, esses, a minha avó sentiu-os como se fossem focos, num palco, ela estava tonta, com a cabeça à roda e sentou-se pedindo um copo de água. A adrenalina tinha sido gasta e o seu corpo pedia ar. O seu vestido dourado estava suado e marcado pelas palmas das mãos do avô! As luzes, os holofotes de um momento, apagaram-se. Ficou silêncio, as velas das mesas redondas continuaram acesas… Mas para ela tinha descido o pano da vida, e aí começou a amar.
Eu e a minha mãe chegámos ao lar, e ela lá estava… Baloiçava numa cadeira de lamentos, murmúrios de um passado recente e de uma vida que é a sua, e a dos outros. A mísera energia que deambula aleatoriamente pelo seu corpo, dissipa com as batidas de um relógio de parede que dita “tic tac”, sem saber ao certo o que conta.
“Agora aprendeu a imitar o relógio. Leva assim o dia todo…” – disse-nos uma enfermeira que passou a correr pela sala de estar…
A minha mãe preocupa-se com ela e afirmando que era da velhice, que isso não perdoava, ia falar com ela…
Não deixei, não queria que a minha avó se cansasse, ninguém a iria compreender.
A sua mão direita, frágil e seca, segura uma bengala antiga e inútil para a função que supostamente deveria exercer, mas útil para contar os compassos binários daquele ditador do tempo. A lareira continua acesa. A madeira estala quando arde, como se se tratasse de um efeito especial para alegrar a melodia.
E fica ali, baloiçando entre o aquém e o além, aguardando… um “tic” sem “tac”, ou um tango que morreu no amor que não sobrevive ao tempo, não resiste à vida… O olhar dela ia longe, pareceu-me que me tinha piscado o olho quando lhe segurei a mão em gesto de devoção.
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