um corpo dado ao desejo…
gabriela rocha martins
silves,
2015
… em véspera de matinas
O nosso grande erro é tentarmos obter de cada um
as virtudes que ele não tem e esquecermo-nos
de cultivar as virtudes que ele tem.
-Marguerite Yourcenar.
ao CV
no dia em que me cansar de ti
*
quero-te um poema calcinado pela tarde
uma crónica
um privilégio
uma desordem imperecível
cheira a margaridas o encontro das marés
*
vestem-se de azul mar os teus braços que enroscam
os meus num amplexo com cheiro a margaridas
*
era verde a melancolia do verso quando a tua mão pousou
ao encontro da minha e eu quedada no medo de acordar
deixei-me surpreender com a astúcia de quem a meu lado
questionava – perdeste a língua?
não entendi o vazio que o teu abraço guardava e
na solidão do teu corpo e na ausência de mim
apaguei-me na folha do poema imaginando-me
no recanto mais ousado do teu corpo e num momento
breve
brevíssimo
tive-me suspensa entre o ser o querer ou o ousar
como se a tua língua me dissesse
prende-me meu amor e o teu corpo me gritasse que para
lá de ti há um infinito de marés bravas ( então )
baixo
baixíssimo
levantei voo consciente que o tempo de aproar
me deixaria presa ao cais e o teu adeus que não
começou nem acabou em mim seria mais um conflito
onde a razão fenece
*
acorda – meu amor – hoje o poema reveste-se de um verde
a mar
revisitando a distância do teu nome
*
não devia ter aberto a página do teu nome
como não devia ter acordado a palavra ou
encostado a vigília à distância
- desmonto-te e não me apresso -
*
silêncio
meu amor
tangem as harpas
descalça atravesso a janela do silêncio
*
sei-me cativa da rosa que deixas sobre a cadeira
enquanto a tua mão se estende para a porta que
devagar
como os gestos trocados se abre ao encontro de
novos encontros
é ( então ) que deslizas pelas manhãs claras de
um café tomado ao a dorm'ser enquanto as tardes
antecedem o festim que preparas sem te aperceberes
que o amanhã já se inseriu nas páginas preenchidas
demais por outras histórias de encantar
abres os braços e eu - fêmea – enrosco-me felina
na melancolia do a manh'ser olhando o retorno ao
silêncio onde sempre me atenho por inteira
um dia hei-de deixar-te num golpe de a mar e
sob a chuva que lado a lado com os gnomos
se envergonham de ser correrei ao encontro dos
meus ídolos de adolescência
consciente de que para sobreviver terei de mergulhar
no teu olhar cego ou fechar todos os livros ...
... coberta de algas
junto ao barco que em praia mar ancora no meu quarto
finjo devagar a pressa de acordar
*
passo como uma manta de retalhos ou
um barco onde o sorriso naufragou e
tenho frio quando me visto deste silêncio
hostil que me cobre o rosto .tenho-me num
regaço aberto onde escavo o túmulo dos
teus ossos para num pranto que ouso só
para mim acompanhar-te ao coração da
noite .aí cubro-te de afagos .bordo-te uma
canção de embalar e no tumulto de um ser
em dois estendo-te a mão fingindo entender
a pressa de acordar para esculpir o teu nome
no mármore das palavras graves
tenho-te no mar onde o meu corpo se espraia
*
jamais ousarei pronunciar o teu nome ou
haver-te entre os murais da minha escrita
(in)certa em seguir-te ao encontro do
mar que entre a música e o vento se entrega
por inteiro ao rumor da dança reservado a
um “pas-de-deux”
crio-te no tumulto do lugar para ulcerar
o rumo secreto dos meus passos e se o vento
estiver de feição
reconhecerei se o teu rosto me demanda
se acaso não
aproximar-me-ei
devagar
da casa grande onde tudo um dia será revelado e
aí
encoberta pelo silêncio ou pelo tumulto da cidade
derrubarei a fadiga e o muro que me separa da
fonte para em constante demanda
construir com as minhas mãos o movimento
complacente do poema
afora a sombra o pensamento viaja
no lado contrário das coisas que se escrevem e que se lêem
para quem escreves
se eu ,mulher
não te abri a porta nem te premeditei como sílaba?
*
agora
é a tua vez de adormecer sobre a mesa onde
as palavras rolam ao encontro da morte por
que estás condenado a morrer nesta página
onde se inicia o jogo subtil da contra dança e
onde eu
mulher
adornada ao longo dos séculos
hei-de erguer-me sempre viva
-inventa-me
meu amor
inventa-me nessa dor física que sabe a alegria
inventa-me para que me possas ter
no lado visível das coisas
as que se lêem
-inventa-me
meu amor
inventa-me ,tu
o autor
o apagador
o escritor
o irreverente inventor
do logro
onde o desejo enlouquece
-mas
por favor
reinventa-me! e
se a coragem não te faltar
persegue-me
*
em páginas e páginas de silêncios
sem medo de nos perdermos
ao futuro ,contraponho o que quiser
*
se te quiser mar … tenho-me vento
se te quiser quilha … tenho-me barco
se te quiser árvore … tenho-me ramo
se te quiser noite … tenho-me dia
se te quiser sombra … tenho-me sol
se te quiser canto … tenho-me poema
( e )
se te quiser agora … tenho-me amante
estranho o sentimento que escondo na algibeira
*
é tempo de madrugar e sem querer
persistir na aleivosia submersa pelos deuses que
me conjuram subjugo a palavra que me persegue
na frase talhada a fogo
filha da terra teimo o mar para qual Dafne
perseguida por Apolo construir quimeras com um
copo azul na mão esquerda e as escamas do teu
corpo cobrindo os meus cabelos de água-mar
então e
só então
apercebo-me de que é necessário terminar o poema
*
da cicuta suspeita-se o silêncio
invento um alfabeto para a polinização
*
às vezes quando a noite cresce jovem
os corpos cheiram a rastos de viagens
e dentro do nosso quarto as árvores
seguram-se frágeis aos fios do candeeiro
um murmúrio um lamento um resto
de afago ficam colados ao rosto da
lua que sem decoro
vem espreitar o nosso dormir acordados
e de coração rasgado esconde-se
nas linhas das nossas costas sem pedir
licença
senta-se no chão
foge para dentro da nossa cama e
fingindo despir-se
deixa antever os quartos crescente e
minguante
quando se prende aos teus cabelos ou aos
meus olhos cheios com as cinzas voláteis
do ritual que na véspera celebrámos
*
criptam-se os silêncios como simples
fragmentos e as nossas memórias subsistem
em resquícios de pólen
*
não há futuro maior para as borboletas
quando a tua boca me sabe a inverno
*
que silêncio persiste no acolhimento da voz
que à minha se prende sem aviso?
que sussurro advém num simulacro de beijo?
que máscara se cola a um rascunho de página?
que mulher se desnuda à boca de um grito?
que homem se perde na esquadria do vento?
quem
subverte o casulo onde me estendem a chuva?
quem
se espraia em tormento?
porquê
este equívoco de nós?
*
somos restos de um sibilar onde o poema
se abocanha e
tu e eu
predadores de nós
acolhemos-nos queimados e
pele contra pele
ávidos de olvidos
envolvemo-nos ( encobertos ) na placidez do verbo
*
fora a geada adormece o inverno
movo-me ( de novo ) em direcção ao azul
premonizo para amanhã uma
fúria irreal que me obrigará a
atirar uma centena de caracteres
ao papel .fá-lo-ei em catadupa
e não me interessará
minimamente saber o que possam
pensar e muito menos
arrumá-los ou dar-lhes ordem
porque a indisciplina será o lema
para a bastardia do meu estado
de alma – alma? - eu escrevi
alma?
só um perfeito desajuste de sentidos e
a dessincronização dos meus membros
anteriores poderão justificar o equilíbrio
entre o antes e o depois
isto é
o ante memória e
o pós colapso já que depois de amanhã
nada restará da minha fúria senão
um enorme quadro negro onde a giz
realçarão os graffitis próprios da minha
resistência
no meu corpo explodirá a solidão do búzio
em tempo de arrefecer os sonhos
*
imprimo num cálice de absinto o gosto
do teu beijo e deixo-o deslizar pelas minhas
mãos como se a sensação de te
não ter provado pairasse na
minha cabeça
sou eu e o outro ou tu em mim o conflito fútil
de uma transferência de sentimentos ou
de pássaros idos que saltitam
em imagens subjacentes à minha
memória de menina mulher que durante
o tempo dos amantes se deixa embalar pelo
invento
não sei porque me prendo ao discricionário das
letras se a minha cabeça vazia e o meu corpo
vadio se transformam em pedras
quadrangulares que as ruas despejam como
dejectos de um risível motejar
não uso nem usei o primado da razão nesta
inglória demanda de levantar do chão o tempo
dos sonhos que se queda em teu olhar
estrangeiro enquanto eu prisioneira dos
deuses apago devagar este sonho alucinante
( arrefecidos a criação e o corpo )
de te ter concebido fruto folha ou ave
*
completa-se o ciclo ensimesmado de Juno
o segredo dos deuses menores
*
não escrevo adeus porque fazê-lo seria inventar
demoras que abraçam recados inscritos no
lodo .paragens subtis que no a mar se afogam
ou
gargalhadas
de deuses que se insinuam assim
no instante em que reinvento o vazio
*
sustenho-me no vento suão e deixo as minhas
mãos//grutas coladas ao núcleo óbvio do silêncio
teclo ritmos
levanto a voz
( enquanto )
o teu olhar cego se esgrime na fímbria da aurora e
projecto-a algures
desenterrando as raízes febris do meu amar vadio
grito o teu nome neste tumulto que me alimenta e
esqueço onde começa e onde acaba o galopar do vento
presa como estou aos arrais do desconforto
de noite
deixo que o orvalho cubra o meu corpo desnudo e
diluída em bátegas de chuva
*
escondo-me nas redondilhas em derredor das ondas
do teu cabelo que negligentes se deixam seduzir
por volúveis pitonisas
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