Uma onda de preto e azul inundou a sala naquela manhã agoniada de segunda-feira. Ele era magro, o outro era gordo. Ele vestido de preto, o outro de azul. Ele era silêncio, o outro era ruído. Ele era morte, o outro era vida. Ele era o Dimas, o outro era apenas o cangalheiro.
- Se permite menina, operador funerário, acho que o mereço.
Fixei o olhar do Dimas. Procurei o grito da dor, a raiva da perda, a letargia do choque e apenas reconheci um silêncio agradavelmente desconfortável que foi interrompido por num espectáculo de arrematações.
- Senhora, 25€ para o padre e ele não dá fiado. 15€ para os sinais. 10,60€ para abrir a cova e o resto e o resto… O Dimas é bom homem e os irmãos são drogados. Este homem merece apoio. A mãe precisava de um enterro.
Interessante como somos pioneiros a avaliar as necessidades dos outros. Assustador como somos retrógrados a ajudar a satisfazer essas mesmas necessidades. E olho para o Dimas e não deixo de apreciar como ele é bonito, apesar dos seus olhos vermelhos e cansados da despedida, apesar das suas mãos tingidas do trabalho duro de pedreiro.
Dimas o homem que não tinha dinheiro para enterrar a mãe, Dimas o homem que não teve cinco dias de nojo, Dimas o homem que disse que voltava mais tarde porque tinha de ir buscar os miúdos.
Ruído.
- Menina, são pessoas como estas que precisam de ajuda. Há dinheiros para pôr cartazes nas rotundas para as eleições, há dinheiro para o que eles querem, mas para o que temos de mais certo não há… Menina, menina eu estou a desabafar consigo porque sei que me percebe e digo-lhe já que não é a primeira vez que isto acontece comigo. Iamos deixar a mulher cá fora a ganhar cheiro? Coitada, tive que lhe comprar também umas roupas… Ela não precisa delas, mas um morto digno quer-se ao menos bem vestido, nunca sabemos quem poderemos encontrar pelo caminho. (Distraio-me com a tatuagem que ele tem no antebraço: dois corações a unirem-se e iniciais que simplesmente não entendo.) É uma desgraça, sabe? Fico apoquentado de ver o Dimas assim, ele é bom rapaz, nem parece irmão daqueles gandulos dos irmãos!
- A Sra. Estrela tinha filhas?
- Se tinha, não lhes pus a vista no funeral. É triste, triste… E as juntas e as câmaras? Querem é tachos! Já ando nesta vida há muito tempo e se há coisa que sei é que eles se esquecem da morte, mas a morte não se esquece deles. Bem menina, até logo…Coitado do Dimas.
Silêncio. Pensei em como Hades, filho de Cronos e de Réia, irmão de Zeus e de Poseidon, era um deus solitário, sombrio e de poucas palavras. O azul ficava a cada passo mais longe dos meus olhos.
Dimas e o cangalheiro que queria ser operador funerário.
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