O regresso da Primavera pouca diferença faz no amanhecer dela. Dela e do dia, diga-se. O primeiro gesto, automático, maquinal, com anos de uso, é o de limpar o rosto. Desde que se lembra, talvez até antes sequer de caminhar, chora enquanto dorme.
O chão do quarto é frio e a zona em que vive, próxima do rio, de uma humidade insuportável. Poucas são as manhãs sem arrepios ou desconforto físico. Da janela, com uma chávena de café em punho, observa a maré e procura o cigarro que guardou na noite anterior. Guarda sempre um, por maior que seja a vontade de o consumir antes de se deitar. Talvez muitas pessoas desconheçam mas o melhor cigarro não é o que se fuma depois de comer, do prazer físico ou de praticar desporto. O melhor cigarro é aquele que vem a seguir ao choro, enquanto o ritmo cardíaco volta ao normal e as pálpebras ainda pesam.
Pensa que caso não se despache, chegará novamente atrasada ao emprego. Mas isso até que seria bom. Há dias em que o cansaço se alia ao acaso. Sabemos lá o que pode acontecer quando chegamos a horas. Quem sabe não seja o anjo da guarda a quem rezava na infância, com uma ladainha da catequese, a interceder por ela. Talvez tropeçasse em alguma pessoa, daquelas que magoam, se não perdesse quinze minutos na janela de casa, de cigarro na boca e chávena quente, sem qualquer vontade de contactar com seres-humanos naquele dia. Talvez rasgasse as meias favoritas, em algum movimento brusco e precisasse andar com elas durante todo o dia, naquele estado. Talvez o mundo acabasse e escapava da tristeza que será sentir o último dia da Terra atrás de um balcão. O mundo acaba todos os dias com tanta gente atrás de balcões. Agora, a passo largo, segue rua abaixo, em direcção ao quiosque. Compra jornais que não vai ler, porque os títulos e os rodapés a desencorajam. Na praça há mais um grupo de aspirantes a poetas. Aborrecem-na um pouco. Batem no peito com a mão esquerda, enquanto seguram folhas de autores mortos, na direita. Banalizam o conceito de ser humano, de ter coração. Como adoram falar de coração. Apropriam-se do peito de autores mortos, que não podem reclamar, para disfarçar o vazio nos seus. Belo e simultaneamente doentio. É o mesmo grupo das manifestações, com palavras de ordem e vassalagem a revolucionários que lideram a partir das redes sociais. Os mesmos que fogem quando cabeças são partidas ao seu lado, pelos bastões da polícia, que ironicamente descriminam muito menos que estes manifestantes pela igualdade. Entristece-a saber, mesmo com todas as suas limitações, que o tempo de revoluções e de campeões de coração puro tenha passado, restando apenas o refugo de uma causa assassinada diariamente por aqueles catraios, despojados de valores na vida, mas com folhas preenchidas de poemas escritos por lutadores de verdade. É a verdade sendo alugada pela mentira. Nesta nova era, prostituem-se as emoções em prole dos interesses. Ela deixa-os cantar porque o caminho não espera. Não se pode dar ao luxo de permanecer quieta, convencida de estar a voar.
Ainda agora chegou, mas já sente o cansaço de mil noites. Aquele emprego devora-lhe o tempo, enquanto o tempo a devora a ela. Está no fundo da cadeia alimentar mas precisa abraçar aquela natureza. Não tem outra forma de pagar os estudos. Não veio de longe, mas também não tem colo e financiamento de progenitores que lhe abatam os erros ou acariciem o cabelo. Sente que homem ou mulher alguma tem direito a palavras de ordem, sem antes experienciar uma existência sem colo. Não tem namorado nem sequer paixões. Não sente ser algo desnecessário, mas conserva até hoje uma cicatriz, feito com água a ferver, presente de um animal que falando de poemas de amor, a atacou de forma cobarde, por ciúmes. É este o amor dos aspirantes a poetas que cantam na praça. Ela sabe portanto do que fala consigo própria. Compreende-se a si mesma e essa é a única chama de paz que ainda lhe é possível manter. Da janela do emprego consegue ver que o jardim começa já a brotar com cores diferentes e isso é tudo o que lhe basta para aguentar mais um dia. As horas passam, céleres, sem esperar que respire todo o ar de que necessita para perceber que os dias não são todos iguais. Pelo menos não serão iguais para sempre. Cai o sol, arruma-se a mala e fecha-se a porta do estabelecimento. As noites ainda são frias, mas o abrigo está perto. Precisa estudar, mas hoje não está para aí voltada. Quer apenas jantar, tomar um banho quente e esperar pelo sono. O sono que lhe traz de volta as lágrimas. Não é molhar o mesmo travesseiro noite-após-noite que a preocupa. Não é ter constantemente os olhos inchados. É saber a verdade. É perceber, ao fim de todos aqueles anos, o motivo do choro constante. A rapariga chora a dormir… Por saber que vai acordar.
Comentários
Excelente! Imaginação e
Excelente! Imaginação e criatividade de mãos dadas num espaço ou retrato em prosa pleno de poesia contundente, Sinceros parabéns.
Muito bom!
Muito bom meu amigo. Denso e profundo.
Que seja a primeira de muitas participações tuas aqui. E que as pessoas te admirem a adiram à tua obra.
Obrigado Ricardo
Obrigado Ricardo. É um prazer poder participar nesta TUA obra.
Aconteça como acontecer será sempre graças a ti amigo.
Um abraço
Obrigado Luiz
Obrigado pelas palavras Luiz.
Fico-lhe grato pela atenção e paciência.
Um abraço
Muti bom!
Um retrato presente de uma vida ausente. Um dos melhores textos que li nos últimos tempos. Tão sincero e cru. Gostei muito.
Obrigado Inês
Muito obrigado pelas palavras Inês. Fico-lhe grato.
Abraços.