A Descida

 

A Descida

Português

Desço a rua que me indicaste para pensar no futuro, sigo pelo contratempo da paisagem. Dou por mim ao relento da saudade e quase desisto de procurar-te. Era interminável a avenida, e o alcatrão íngreme omitia, malicioso, o clarão do luar que forjaste para me guiar as passadas. Todas as luas são possuídas por poetas à solta, inspirando súmulas de letras que se impõem com um rigor militar na falésia da vida que começamos. Gramática em sentido a provocar a linguagem afiada do teu amor por mim. Do futuro apenas me ocorre o princípio. A antecipação do primeiro beijo. As línguas revoltas na fome preliminar que devora com comportada perícia o fragmento salvo na última oportunidade que nos concederam. Não perceberam nada, afinal, estou prestes a morrer de ti. Sem ti. Rua abaixo. Caem-me nas mãos lembranças desalojadas que penduro, a medo, na altitude da noite escura. O argumento quase a expirar, e tu, tranquilo, despojado da vontade tua que tornas minha. Pedes-me para pensar o futuro. Sei que te ris de mim. Também eu sou culpada deste paladar manuscrito do verbo que é só bonito. Não suporto o descomprometimento dos teus olhos perpétuos sobre a parábola do caminho. Sei agora que foste premeditado, quiseste que me perdesse nesta rua que dá voltas às nossas memórias. Somos plasticina nas mãos de Deus. E os derradeiros poetas já nos roubaram todo o luar. Se fores capaz de gritar o meu nome é porque ainda aqui estamos. Espero-te no término da rua, e aí, riremos juntos do futuro.

 

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Comentários

A descida

"riremos juntos do futuro"... que lindeza de texto atemporal, que transporta a gente para um lugar de sentimento. Que belo , o seu trabalho! 

Neide Heliodória

Obrigada!

Olá Neide,

Muito obrigada pelos generosos comentários que teceu a respeito dos meus textos. Sensibilizam-me sobremaneira as suas interpretações. 

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