Está frio, tanto frio. Tenho várias camadas de roupa mas frio passa por elas como se nada fosse. Ele entra e entranha-se até aos ossos, torturando-os e fazendo doer o simples acto de andar. Brincamos com o ar semi-congelado que sai a custo dos nossos pulmões cansados, tentando não prestar atenção a um frio que mata silenciosamente. Mas se o frio gosta de ser um assassino mudo, já o vento prefere exibir o seu poder, uivando a cada rajada, regozijando-se a cada corte na nossa carne inocente. É impossível estar fora da ponte nestas condições, sobretudo sabendo que dentro dela existe uma frágil centelha de calor e segurança. Dentro dela também está escuro, mas os seus caminhos à muito que são conhecidos e o vento aqui não ousa entrar, fustigando o navio de fora.
Mas o pior não é o frio. É a penumbra. Este nevoeiro cerrado que nos envolve e agasalha o desconhecido, usando o seu toque frio para tentar inspirar o medo nas nossas almas. O desconhecido sempre inspirou medo ao Homem, mas um desconhecido que não se revela inspira muito mais.
Desafiamos o mar mergulhando a nossa proa sobre as suas ondas qual lança investindo sobre o escudo, vindo lentamente ao de cima, sentindo-se o esforço do navio só para voltar a repetir-se um ciclo que parece interminável. Mas o navio avança. Avança sobre o desconhecido e não se irá render. O país conta connosco e a palavra falhar não constará nas páginas da sua História. O rumo está traçado e não sofrerá desvios. Vejo o marinheiro do leme de mãos firmes e sem vacilar, mas de olhos pejados de receio. É a sua primeira navegação e este o seu primeiro mar alteroso. “Mar calmo nunca fez bom marinheiro”. Aperto-lhe o ombro suavemente para transmitir mais confiança na sua estreia ao leme de um navio, não o deixando resvalar a proa do rumo definido.
Navegamos noite dentro e os minutos custam a passar. Só sentimos a sua passagem pelo apito longo que assinala a nossa presença a possíveis outros na área. Contamos os apitos que faltam até sermos rendidos, sonhando que depois tudo acabará e Neptuno fará as pazes connosco. A baixa visibilidade e o uivo solitário do vento impedem-nos de baixar a guarda. Mas está frio, tanto frio…Custa mexer o corpo, custa respirar, custa viver…
Passo a Bordada a outro Oficial mas fico-me na ponte. Ir descansar é uma ilusão com um mar tão bravo e com um apito de 2 em 2 minutos…
Penso em ti. Agora já posso pensar em ti. Tenho saudades tuas. Saudades do teu toque. Da tua mão acariciando a minha cara dizendo sem palavras que tudo está bem. Tenho a cara magra e os olhos vazios. As horas de sono têm sido poucas e os dias como o que tenho descrito, descomedidos de ondas excêntricas e revoltadas. Tenho frio, tanto frio amor. Estas palavras escritas a custo dão algum conforto na tua ausência mas sou egoísta e quero é estar contigo aninhada a mim em mais um dia das nossas vidas. Quem anda no mar é assim, de gostos simples e pormenores humildes.
Está quase amor, está quase. Só mais uns dias, só mais umas aventuras.
Mas está frio, tanto frio...
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