Os pensamentos da mulher do espelho

 

Os pensamentos da mulher do espelho

Portuguese

Hoje, ao passar diante do espelho, ela viu algo diferente e ali ficou, a olhar aquela imagem que o espelho lhe mostrava, procurando ver o que aqueles olhos lhe diziam ou lhe mostravam. Aqueles olhos, outrora tão doces e naturalmente brilhantes, mostravam a dor de alguém que se havia perdido ao tentar agarrar algo, ao tentar prender esse algo a si, para que não fosse embora. A verdade é que esse algo foi-se embora. E depois voltou. E depois foi embora. E voltou e retornou a ir embora. E desta vez ela foi embora juntamente com ele, para que não voltasse a sentir novamente a dor de ter e de perder, a dor de conseguir ultrapassar tudo e recuperar e afinal não passar de uma exceção, agora ela já sabia que ele ir-se-ia embora e decidiu não ficar mais à espera que o algo voltasse por mais um dia que lhe custaria milhões de dias.

            Foi nesse ter e não ter mais que ela descobriu que ser-se ferido exactamente no mesmo sítio, várias vezes, não diminui a dor, pelo contrário: torna-a mais triste, mais dolorosa, menos suportável.

            Ela quis algo e foi atrás. Só que qui-lo tanto que esqueceu-se de si, que esqueceu-se que nem sempre aquilo que queremos é a coisa certa para nós ou é aquilo que precisamos. Por isso ela perdeu-se e só deu por isso muito tempo depois.

            Aquela voz interior tentou falar com ela, disse-lhe que não valeria a pena tentar novamente, disse-lhe que era tarde de mais. Mas ela era teimosa… E não lhe deu ouvidos. Ao olhar a figura no espelho lembrou-se que algures no meio do caminho havia deixado de ouvir essa voz. Ou talvez tenha apenas desaprendido a ouvi-la. Agora ela sabe que aquela voz era ela mesma.

            No fundo, ela sabia perfeitamente qual seria o final, fez de tudo para não lhe mentir, para ser justa com ele, para ser honesta para com ele, que acabou por se esquecer de ser honesta consigo própria, de não mentir a si própria, de ser justa para consigo própria. Agora nada tem. Ela previu essa situação pormenor a pormenor e mesmo assim quis tentar, quis agarrar algo, porque precisava de ter algo a que se agarrar. Esqueceu-se de se agarrar a si própria, esqueceu-se de cuidar da sua voz interior e de lhe dar ouvidos, esqueceu-se de ser quem sempre tinha sido: esqueceu-se de si. Quis esquecer-se de si para poder abraçar um mundo que, afinal, não lhe pertencia. Agora sabe-o bem, e sabe também que pode voltar a qualquer momento para aquele mundo e continuar a agarrar o vazio e a acreditar que tem tudo, quando nada tem. Mas ela também aprendeu muito nesta viagem, e cada vez que pensa no caminho que trilhou, aprende ainda mais e melhor. Ela aprendeu o suficiente para se ir embora e para aguentar a força que há tão grande dentro de si a querer voltar para o habitual, para resistir à natureza do ser humano de se refugiar onde se sente seguro. Ela já não se sente segura naquele mundo, por isso foi-se embora. Ela sabe que tem que ir ou não voltará mais a si.

            É esta a história que aqueles olhos azuis contam, naquele mesmo espelho, naquela mesma casa, naquela mesma hora: a sua história.

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