Naufragado,
por Yolanda Silva
Inspirado no poema Annabel Lee, de Edgar Allan Poe
Há muito tempo atrás, um velho contou-me uma história. Ele disse-me que era a história de um naufrágio. Alguns poderão contestá-lo, mas para ele era o pior naufrágio que qualquer homem poderia sobreviver.
O velho era um velho como outro qualquer. Tinha uma barba grisalha, tinha os olhos cinzentos e um boné cinzento cobria a sua cabeça calva. As suas mãos estavam marcadas pelo Tempo e tremiam a cada vez que elevava o seu copo de vinho. Escuro e denso, o vinho preenchia o vazio deixado pelas palavras que escapavam da sua boca.
As suas mãos tremiam e ele falava devagar.
Via-lhe os movimentos dos pensamentos, enquanto procurava cada palavra com a mesma delicadeza com que um jardineiro escolhe as flores para os seus canteiros primaveris. Porém, as suas palavras, como os seus olhos, habitavam nas profundezas do Inverno.
Movia-se demoradamente e a sua história crescia com lentidão. E essa, ele contou-ma assim…
Faz muitos muitos anos, num reino junto ao mar, vivemos um amor que era mais do que amor, a minha amada e eu. Éramos crianças, somente crianças, neste reino junto ao mar, e vivíamos com um único pensamento de amar e ser amados, num amor até pelos anjos no céu invejado.
Éramos felizes no nosso amor, mas vieram ventos de outros reinos que trouxeram cavalos e trouxeram cavaleiros e trouxeram fogo e trouxeram canhões. E na tempestade, as nossas mãos separaram-se para nunca mais se reencontrarem. Vi soprar de uma nuvem glacial, um vento maldito que enregelou a minha bela, doce amada, e a levou para longe, tão longe de mim… E desejei que uma onda deste mar imperdoável viesse para me consumir também a mim, como devorou a minha bela, doce amada…
A cada noite, a Lua já não brilha para mim, assim como as estrelas já não ascendem ao céu. Há apenas esta escuridão. E passeio ao longo do sepulcro deste reino junto ao mar, a minha amada e eu… A cada noite, sonho apenas com os seus longos cabelos brincando com o vento, como fadas num mundo maravilhoso. E todas as vezes que fecho os olhos, são os seus olhos brilhantes e doces e cheios de amor que eu vejo. E enquanto o mar não me levar, enquanto a morte não chamar o meu nome, aqui sonharei os meus sonhos da minha amada e sonharei no silêncio de um sepulcro junto ao mar, nesta tumba junto ao mar.
Recent comments