À luz dúm olho

 

À luz dúm olho

Portuguese

~~À luz d´um olho

Havia a fantasia de formar a melhor banda de Rock de todos os tempos, em Southend-on-Sea, Inglaterra. A necessidade de começar um curso temporário de procura de trabalho que acaba por me quebrar a vontade. Deprime-me a vontade, quando o mundo congelado que as pessoas desse prédio cursivo habitam, se faz sentir.
Descrença, isolamento. Paranóia, depressão. Vejo filmes à noite com o meu irmão, oiço música rija durante o dia, triste. Deixo a barba crescer, escondendo-me a dor.
Chinmayo, um amigo nascido português, de velha data, vem fresco da Índia e decide visitar-me durante alguns dias. Ensina-nos, a mim e ao meu irmão Filipe, umas meditações dinâmicas. Os dias em que ele cá está ajudam-me a tomar a decisão que já andava a marinar por algum tempo no alguidar da indecisão: voltar para Portugal. Ao fim de três anos de vida no Reino Unido, deixo Filipe, a viver em casa do nosso pai e da nossa madrasta, dando-lhe um grande abraço de incentivo, passando-lhe a minha força bamba, própria desta fase por que passava, como um empurrão para que acabe o seu ano escolar, de artes plásticas, em beleza.
Aterrado em Portugal, estava disposto a cumprir a promessa que tinha feito à minha mãe e, assim, terminar os estudos secundários que tinha deixado incompletos no ano em que fui levado a partir rumo ao estrangeiro.   
Um mês depois de cá chegar, consegui um trabalho de part-time num albergue situado no Largo dos Restauradores, ficando lá a trabalhar durante um curto período de tempo, algo como dois magros meses. Durante o período em que lá estive empregado envolvi-me com três hóspedes: uma rapariga espanhola, Bea, uma inglesa, Emilly, e uma grega, Oneda. Durante esta fase foi-me dado a compreender, ou a relembrar, como as pessoas exibem, ao peito, uma tolerância desproporcionada para com os seus semelhantes, tomando-os pela mão. De outra forma, estas três raparigas que menciono, funcionaram para mim como um despontar de luz interno já inesperado.
Recomecei os estudos com um certo entusiasmo e continuei a fazer as horas de trabalho que me eram pedidas, por cima das aulas, mas por pouco mais de uma semana.
Acabei por ser despedido por ter sido apanhado a dormir num dos sofás da sala de convívio, numa madrugada, em que a minha colega polaca lá chegou, para começar o seu turno, e se depara com a porta principal aberta e, ao fundo da sua visão matinal, comigo, deitado, encolhido no sofá, com uma almofada na barriga e um sorriso sarcástico na boca.
Um qualquer hóspede tinha saído e tinha lhe acontecido esquecer-se de me fechar a porta devidamente, como era habitual naquele albergue que finalmente abandonei. Posto isto, e dedicado meramente às aulas, comecei a encher a cabeça de pensamentos e a fumar cigarros indianos, Gudan, que Chinmayo me tinha trazido da Índia, para me manter calmo durante os dias em que não tinha nada para fazer a não ser ir para as aulas às seis da tarde e adormecer à noite. O desinteresse bateu-me à porta da consciência mais cedo do que eu o esperava. Acabei por me fartar dos conteúdos demasiado vagos e, apesar de estar a ter um bom desempenho na feitura dos trabalhos que me eram propostos, acabei por sair dessa vida sem pensar duas vezes, uma tarde mais tarde a ter-me deparado com este cenário:
Estendido, um relvado cercado por árvores gordas, formava um rectângulo natural. O jardim de Belém é perfurado por um caminho de cimento, formando um labirinto prestes a ser trilhado. Toda a estranha gente se desloca por aquela zona. Desde velhos embirrentos a crianças esquizofrénicas.
Um grupo de sete mulheres, com os seus cinquenta anos de idade, de lenço negro a tapar-lhes a cabeça e nuca e uma vestimenta negra até aos pés, passam o dia inteiro a ler a sina às pessoas e a receberem uma moeda em troca dessa suposta proeza.
Fazem também uma leitura das auras de cada pessoa, dando-lhes indicações acerca do que está prestes a acontecer a cada um, isto é, num futuro próximo, como em horas mais tardias de um mesmo dia ou anos mais tarde, nas suas vidas.
Nesta tarde dou por mim a dar uma espreitadela ao jardim, por entre as árvores de tangerina. Estava uma brisa quente no ar que parecia sensível ao toque fresco das águas em jacto das regas automáticas. Ao recomeçar a marcha dou de caras pálidas com uma mulher com qualquer coisa mística acerca de si e um óleo de aspecto escorregadio a percorrer-lhe as rugas do rosto. A mulher, ao fixar o seu olhar em mim, puxa-me a atenção como que magneticamente, para dentro dos seus olhos e sou arrastado na sua direcção como que por atracção sexual, intimidadora. Ela leva-me a mão direita ao nível do peito e começa: “ O menino vai ter uma vida muito longa.”. Olho-a de relance de fora e mergulho novamente nos seus olhos inevitáveis. Conta-me que me puseram uma maldição em cima. Uma capa preta, feita de fibras negras, emaranhadas umas contra as outras formando um manto pesado e indecente. Teriam sido duas mulheres a enfiar-me este capuz da morte: uma mulher de meia-idade e outra mais velha. Pessoas notavelmente perturbadas pelo jeito seco da vida. Mas não havia razão. O sol brilhava num clarão translúcido de cores beije e rosa. Um bocado irritado e viciadamente céptico, olhei para a mulher com desdém, arregalei o nariz à esquerda com força e afastei-me como um fantasma. A mulher ainda me grita, de longe, entre gente e gemidos: “…por vezes não funcionas bem dessa cabeça, chegas a ter palpitações!!...”
É certo que sempre fui uma pessoa um pouco tímida e louca. Gosto de explorar este mundo, sem preocupações extra-mundanas mas, por outro lado, não aprecio ter uma pessoa a tentar investigar o mundo ao que me agarro para conseguir viver cada dia de cada vez, com um olhar perfurante como aquele de quem olha para dentro de um buraco escuro à procura de qualquer coisa.
É verdade, nem sempre me sinto bem durante o quotidiano. Muitas vezes sinto-me em desequilíbrio puro, sinto a perna menos forte a tremer sem uma razão aparente quando outras pessoas, de outras formas de estar, me rodeiam com uma lentidão própria de quem quer ajustar contas. Sinto-me como se tudo aquilo que existe no meu mundo fosse demasiado importante para me deixar ficar por ali, relaxado ao lado de mundos assustadoramente reais também.
Dos talos de relva chupados na terra à revelação que se tinha descolado pelos ares, naquele jardim, penetrando-me o clítoris do pensamento e atingindo de novo o orgasmo silencioso daquela realidade colectiva, sonhava, mole e distraído, em como seria o sentimento de viver como aquelas mulheres estranhas. Andando devagar, os pelos, nos braços, a ser queimados, pela intensidade do calor, no manto, negro, e a cabeça, pesada, mas firme. Estas mulheres recebem uma quantidade de energia, energia solar, fora do habitual, por andarem constantemente ao sol e por estarem sempre vestidas de negro. A luz fina desenha-lhes um rebordo dourado nos vincos das vestes longas.
Depois do farto calor do momento, ter passado, senti necessidade em falar, de novo, com uma daquelas mulheres. Mas devia ser outra. Estava indignado e, ainda que céptico, não conseguira afastar a ideia diabólica de que aquilo que a mulher me tinha contado, pudesse, por suposição, ter um fundo mais concreto e difícil de achar. Existe um certo magnetismo a rondar a situação. Aquela ideia tinha-me, entretanto, andado a bater nas paredes da mente, como uma mosca irrequieta, sem ter encontrado a passagem de saída livre até então. Não existiam dimensões nesta situação. Chego a um dos cantos do jardim e deparo-me, novamente, com a mulher enrugada que me tinha irritado a pele da consciência. A intenção do universo, por mim desconhecida, dizia-me, subtilmente, ao ouvido, que havia mais a saber sobre este assunto desconfortável.
Conseguia sentir os seus olhos negros com um aspecto de vidro liso a cintilar. Afastou-se. Procurei novas faces, mais óleo e silêncio. Deslizei de encontro a uma bruxa diferente. Ela deu conta do meu interesse nela e pediu-me logo a mão. Voltou a dizer-me que teria uma vida bastante longa, cheia de altos e baixos, mas que se viria a dar, algum acontecimento de grande importância e bastante invulgar, perto do final da minha vida.
Seria um dos resistentes que chegaria até às últimas e, ao sabor do vento da existência, as minhas cinzas e alma unidas numa só, formariam dunas macias, numa dimensão diferente. Volto a ouvir que me lançaram uma maldição. Silêncio ácido. A velha olha-me com uns olhos um tanto velhos e amarelados, e conta-me que conhece uma pessoa que me pode curar. Estamos a falar de uma curandeira, uma mulher que consegue limpar o espaço espiritual da pessoa em questão, entrando num transe profundo em que a sua alma entra na do paciente e a desbloqueia por completo.
Sentia-me perdido e sujo como um miúdo que foge de casa e se desorienta, sujando as roupas com lama e, de súbito, se afoga em lamentações por ter deixado o abrigo do conhecido. O sol ferve e oiço isto tudo a rebentar-me na cabeça como uma caixa de dinamite. Peço à velha, ainda meio tonto, que me mostre a curandeira. Andamos uns vinte, trinta metros através do jardim de árvores balofas e acabamos por tropeçar na mulher do costume. Outra vez a mesma! , regurgito.
Era a bruxa da hora anterior, uma mulher de olhos verdes, cabelo curto, branco égua que, desta vez me conta o significado, mais profundo, da sua estada no jardim. “Já limpei todo o estilo de gente que vem até este jardim.” Desde mulheres com mau-olhado a jovens com fraqueza de espírito.
O falar dela envolve-se com o chilrear dos pássaros à minha volta, de uma maneira algo alucinogénica, mas faz-se ouvir, ainda assim, de forma eloquente.
Observa-me de novo os riscos da mão mas, desta vez, de forma mais demorada, detalhada, e não fala. No final pede-me que agarre em algo que me passa, de punho baixo, sentindo-se um leve trave amargo, a conspiração, naquele acto. Sentindo o pequeno objecto, segurou-o meio firme na minha mão indecisa. Olhava, por vezes, para as pessoas que passavam, e sentia que estava a ser enganado. Maior parte das pessoas, não passava, sem fazer aquele sorrisinho sarcástico, usando o canto da boca para dentro, e um dos olhos semicerrado enquanto olhavam, de lado, toda aquela cena.
Não tinha qualquer tendência para me tomar em conta como parte daquela situação porque, de qualquer maneira, pouca diferença me fazia aquilo que as pessoas pensavam ou deixavam de pensar. Naquela altura, devido a certas atitudes e situações que havia presenciado anteriormente, maior parte das pessoas era dotada de uma ignorância tal, que para elas, verem-me ali, com aquelas mulheres, seria o mesmo que nada ver.
Pedi três desejos mentalmente, tal como me indicou, enquanto, com os olhos, atravessava os da bruxa, indo embater numa espécie de parede branca lá bem no fundo.
Senti uma certa superficialidade em cada desejo que pedi, ao pensá-los como penso outra coisa qualquer, mas tinha que dar esse passo, aparentemente determinante.
Ser feliz;
Ficar com a mulher que realmente amo;
Conseguir desenvolver a minha criatividade.
Soltei, ainda assim, lentamente, num tom macio, como se rezasse o “Pai Nosso” e esse “Pai Nosso” se transmutasse carismaticamente, num estilo de gás benevolente que acabava por dar uma energia magnífica, pacífica, plena, ao meu mundo, à medida que o som mentalmente produzido, emanava compreensão.
Manda-me guardar aquilo, que tenho na mão, na carteira.
“É a raiz do mau-olhado. Protege-te.”, guardo a raiz, encosto-me para trás, a uma árvore. A bruxa diz-me que não dá valor ao dinheiro mas acaba por me pedir cinquenta euros pela cura. Faz-me ficar sem o dinheiro que tenho na carteira e obriga-me a ir a casa buscar os quinze euros que me faltavam pagar. A bruxa, insistente, acaba por me empurrar a ir apanhar o eléctrico, com o seu discurso, de estrada longa, mencionando aqui e ali que não dá importância ao dinheiro. Está bem, está. Pego no meu saco com o livro e o caderno de desenhos. Ando até à paragem do eléctrico e, consultando o visor, constato que faltam três minutos para este chegar. Chego a casa, pego no dinheiro, de uma forma praticamente automática, e faço-me, de novo, ao caminho, como que enfeitiçado pela vida.
Mas a verdade é que me via obrigado a pagar à Bruxa o que faltava, o que lhe tinha ficado de pagar era também uma garantia de que ela não lançaria nenhuma maldição contra mim. Nesta fase, era o medo que falava mais alto aos meus ouvidos, andando de um lado para o outro, e não o meu raciocínio humano. A desculpa rasca, para completar o pagamento, era o facto de que valia mais ir em frente com o pagamento, já que tinha acreditado na mulher à partida, que chegar ao fim da cura com espaços, indefinidos, por preencher. 
Uma vez que chego novamente ao jardim, vou buscar um sumo de laranja natural ao café mais próximo. Era um entre muitos transeuntes que o sol fazia soar em bica, como já não se sentia há muito tempo. Brisas mornas ainda eram o que havia de mais fresco.
Chego ao local, aborrecido, onde esta mulher estranha e pegajosa está. Passo-lhe para a mão o resto do dinheiro e sento-me, novamente, encostado à árvore.
Ela, e a sua parceira, estão a almoçar, ou coisa que o valha. Pergunto-me quem são estas pessoas esfomeadas que passam o dia inteiro no mesmo sítio e comem que nem animais de carga. A bruxa do costume conta-me que durante o tempo em que estive ausente, ela fez umas rezas por mim, em nome de Jesus Cristo.
Mais tarde, mandou-me que me afastasse para poder orar mais um pouco, em paz.
A bruxa parecia interessada em mim, mas não conseguira até então livrar-me da ideia de que a mulher estava mais interessada no dinheiro do que no paciente. Enfim. Galhos na correnteza. Ela diz-me, que ao estalar da meia-noite, vai estar, na Boca do Inferno a fazer umas orações por mim, para descobrir mais coisas acerca da minha vida actual.
Não estou importado com o dinheiro. Só queria poder mandar parar todas as minhas obrigações. Dar de caras com algo mais substancial do que aquilo que “os que sabem sobre as coisas” me ensinavam. Havia muito. Muita coisa para descobrir e pôr à mostra, nesta viagem.
Na tarde seguinte, ao sair de casa, sou tomado, por um sentimento de frustração, que me impele a ir passear para o jardim, vingando-me da obrigação de ter de ir para a escola. É isso que acabo por fazer. Mas em vez de ir para o jardim de Belém, decido-me, por um outro, que ficaria um pouco mais longe, - o jardim da Estrela, perto de Campo de Ourique.
Chego ao jardim e caminho, em direcção ao miradouro. Uma vez no seu topo, ao reparar que ninguém por ali caminha, sento-me, de pernas cruzadas, e encosto-me para trás, nas grades, olhando o céu apenas sujo de mínimas nuvens. Acabo por fechar os olhos, adormecendo ao sol. Quando acordo, lembro-me de um sonho, em que caminhava à beira mar, numa estreita passadeira de pedras redondas, que emitiam um som de chocalho, engraçado. Veio-me também à memória uma enorme falésia da qual me ia apercebendo enquanto por ali caminhava.
Olho para o relógio, à força do hábito, e só aí me lembro de que devia estar nas aulas, sentado numa cadeira de madeira, a olhar para um tipo de óculos, denominado de professor.
Eram já três horas da tarde, chegavam-me vozes de pessoas, que indicavam que estas estavam bastante perto de mim, algures a subir para o miradouro. Sem as olhar, passo por elas e continuo a caminhar pelo jardim sem qualquer sentimento de obrigação. Tinha decidido que, se alguém me ligasse, da escola, a perguntar qual a razão de estar a faltar, diria simplesmente que não me sentia bem e que me encontrava numa clínica, perto de minha casa, de momento. Entretanto, sou surpreendido pela minha mãe, que me liga e pergunta como estão a correr as coisas. Ao que minto respondendo: “O costume!”. Mas acabo por confessar que tinha deixado os estudos de lado, para ir passear, deixando o cumprimento das minhas obrigações de lado.
Pouco tempo, depois do sucedido, decido ir viver para casa de um amigo, em Benfica. Continuo a visitar o jardim de Belém, esporadicamente, para apanhar um pouco de sol e ler perto das árvores, fazendo sinal às bruxas de longe, ao que elas respondem apenas como que em tom de norma de boa educação.
Madalena, minha mãe, fica muito sentida com a minha súbita mudança de atitude e pede-me que fique em casa, por favor. Contrastando, de forma vincada, mostro-me decidido e peço-lhe desculpas por esta não ter sido uma mudança mais gradual. Devido ao receio, que ela mantinha, em relação ao meu uso imaginário de drogas, pede-me, que lhe jure, que não se trata de nada dentro dessa mesma índole.
Com o ingénuo intuito, de dar alguma paz de mente, à minha mãe, minto-lhe, dizendo-lhe que iria somente viver com Joana, uma namorada imaginária que tinha inventado à pressão e que, para ajudar a pagar a renda da casa, na qual começaria a viver daí por diante, iria arranjar emprego o mais rápido possível na área de Benfica.
Ficando tudo com uma leve névoa de certeza, esgotada, pelo meio, faço, por fim, a mala, e aceito a boleia de minha mãe, que insiste até à última décima de persistência, para que a aceite.
Ao chegarmos à porta de casa do meu amigo, dou-lhe um toque no braço para que pare o carro e, com a sua ajuda, tiro a mala do porta-bagagens, beijo-a, e, antes de entrar no prédio, com um ar triunfante, beijo, também, a palma da mão e movo-a na direcção do carro, que se mantém exactamente no mesmo sítio, com um ar passivo, como algo que está só à espera de ser levado do sítio onde está. E, finalmente, cada um toma o seu caminho.
Passa-se uma semana e meia. É o tempo suficiente para traçar uma nova rota no meu novo mapa de viajante. A próxima paragem revela-se: Colares, Sintra.
Durante esta semana e meia em Benfica, não faço mais do que meditar, até à exaustão pura, ler, fumar e beber, com um grupo de amigos, que por ali vive, junto às Portas de Benfica, incluindo Ninja, o dono da casa na qual morei durantes este período de tempo. Durante estes encontros fala-se de tudo o que vier ao de cima, sem restrições, incluindo as criações em que cada membro do grupo anda a trabalhar: pintura, escrita, música.
Quando soube da possibilidade de ir viver para Sintra, tratei logo de contactar Orlando, um conhecido meu, que, por essa altura estava a viver permanentemente num terreno ocupado, em Colares e, de lhe pedir para que me aceite lá, explicando-lhe que seria o melhor para mim nesta fase da minha vida. Ele concorda e diz para ir para lá quando bem me apetecer.
Rebento de contentamento com este nível de abertura por parte de Orlando e agradeço-lhe do fundo do coração. No dia seguinte, dirijo-me de malas e bagagens, para Sintra. Paro num estabelecimento comercial, de material desportivo, a meio do caminho, e compro uma tenda que passa a ser a minha casa propriamente dita.
Ainda que enraizado no momento presente, sinto-me eufórico, de tanta coisa positiva me andar a acontecer, desde aquele encontro com as bruxas.
Olhar para trás e lembrar-me da situação em que estava, haviam passado, só, duas semanas, era como lembrar-me de um pesadelo que tinha acabado de ter ao acordar. Apanhando todos os transportes necessários para o efeito, pedindo informações aqui e ali, chego ao Banzão de Colares, terra, onde este terreno tão desejado por mim, está à minha espera. Saio do autocarro com a mochila às costas e tenda ao ombro, sem a certeza de onde o sítio seja exactamente. Começa a chover torrencialmente pouco antes de abandonar o autocarro, mas, neste momento, isto até dá um sabor mais genuíno, vincado, à aventura em que, agora, me lanço. Orlando tinha-me falado de uma entrada em que tanto as paredes do corredor exterior, como o chão, estariam cobertos de heras, mas a verdade é que em todas as casas e terrenos à vista as heras são a planta predominante. A tarde está pesada e não há qualquer buraco, na grande nuvem que sufoca o céu, que dê para avistar um pouco de azul que seja. Ando para a frente, e para trás, sem encontrar coisas que me chamem a atenção, e, vendo que a torre de chuva começar a cair mais fortemente, acabo por entrar, por um pequeno portão, todo ele coberto de heras, que pulo. Continuo a andar, por entre ervas e flores encharcadas. A casa desta propriedade chama-me, de certa forma, a atenção. Tem ar de estar abandonada e quem sabe, talvez seja este o terreno que Orlando ocupa. Aproximo-me e bato à porta, com o manípulo de metal, fazendo um barulho seco e que me dá a sensação de que está completamente vazia, devido ao eco que se fez ouvir.
Bato, mais meia dúzia de vezes, mas, apenas para verificar que ninguém lá está dentro. Dou a volta à casa e reparo num alpendre, de pedra mármore, nas traseiras, com alguns pedaços de tronco empilhados, encostados à parede solitária da casa. A chuva parou, ainda assim, o céu continua doente e, pôs-se uma névoa, no ar, que me faz procurar ainda mais rápido um sítio para montar a minha casa de nylon. Reparo que as traseiras da casa, que não têm cercas, dão para um matagal, enorme, e ao avistar uma espécie de torre em ruínas lá no meio, acabo, finalmente, por pôr a tenda em pé, algures, entre estas duas construções, que agora me começam a causar uma espécie de indecisão.
Já estou dentro da tenda, meto-me dentro das mantas que estendi e, deitado, tento concentrar-me na respiração, afastando assim pensamentos inoportunos, e imagens menos encantadoras. Desligo o telemóvel, ao pensar que, ouvir a voz de alguém, conhecido, seria, neste momento, uma inimiga forma de me fazer sentir mais longe e mais perdido. Como também não quero sequer dar explicações complicadas a ninguém neste preciso momento. Não está a ser fácil adormecer mas, quando menos espero, acabo por escorregar suavemente para dentro de mim mesmo, com delicadeza.
Que manhã! Uma claridade, quase sonora, entra na tenda. Apresso-me a tirar uma peça de fruta para comer e puxo os dois fechos da tenda para o lado, até que uma nova realidade se ergue em frente a mim. Está uma manhã terna e silenciosa. Está por aqui espalhado um silêncio que já não acreditava existir. A mordiscar a maçã, saio da tenda num pulo só e caminho, de pés nus, por entre as ervas, até ao portão principal.
Posso jurar que não foi este o portão, que pulei, ontem à tarde. Talvez essa certeza se deva a este dia estar como que abençoado por este sol temperado e este forte odor a madeira molhada, que, de vez em quando, se deixa ser cheirado. Num andamento dançado, volto para perto da tenda, de onde puxo uma lata de milho e uma colher de chá, e assim me sento, em cima de um pedaço de tronco a apreciar a vida. Já de bagagem recomposta, ponho-me à estrada e, é com grande surpresa, que finalmente encontro o sítio do qual andava à procura durante a tarde passada. Entro, então, pelo descrito corredor de heras, e avisto logo alguma coisa que me dá a sensação de ter encontrado aquilo de que andava em busca.
Ao fim do corredor avisto uma casa sem telhado, com pinturas artísticas nas paredes e, logo de seguida, um rapaz sentado a descascar favas para dentro de um alguidar.
- Bom dia!! – sorrio.
- Bom dia! – responde-me Lourenço. Um rapaz de cabelo enrastado e com ar sonolento.
Apresentamo-nos e, de seguida, estando Lourenço já à minha espera desde a tarde do dia anterior, começa por me mostrar a cozinha provisória, que é dotada de um fogão portátil, que por sua vez está ligado à casa do lado, onde vive a família de um dos principais organizadores desta pequena comuna; Os vegetais que são recolhidos e as restantes comidas que lhes são oferecidas ou que eles vão, durante a noite, buscar às traseiras dos supermercados, estão todas armazenadas tanto em caixas sobre as prateleiras de estantes de madeira que aqui se encontram como em potes de vidro, se se trata de compotas ou outra coisa que tenha sido confeccionada pelo grupo.
Falou-me do que se tem, como projecto, para este sítio, que tem árvores de fruto um pouco por toda a parte, um poço que precisa ser desentupido, a tal casa, sem tecto, de que me apercebi ao entrar, que haverá de ser coberta, dentro em breve, com longos troncos sobre cada uma das suas quatro paredes, o chão será alisado, assoalhado, e será esfregada banha nele, fazendo-o parecer-se com as casas de antigamente, pelas quais os seus habitantes demonstravam um cuidado mais ajustado e, por fim, as paredes serão raspadas com a ajuda de espátulas e folhas de lixa de areia para serem finalmente pintadas a rolo e, eventualmente, serem pintadas por um artísta regional, popular, que usará latas de spray para fazer uma autêntica obra de arte.
Um belo riacho corre lá, mais para o fundo do terreno, onde se pode tomar um banho, quando assim se deseje. Há uma casa de banho provisória e uma nova a ser construída. Há, ainda, muito mato para desbastar a fim de se fazer deste terreno uma pequena aldeia, mantendo a sua harmonia natural. Fico sem palavras de tão bem que me sinto aqui. Embora, segundo o projecto, haja uma data de coisas a ser feitas, tudo aparenta estar perfeito como se encontra. Agradeço a Lourenço por tudo e vou procurar um sítio para montar a tenda. Descubro, depois de vaguear um pouco aqui à volta, um espaço circular, formado por altas canas de bambu que, sendo tantas e estando todas tão perto umas das outras, não deixam ver para além delas. Coloco aqui a minha tenda com alguma excitação. Parece que a existência criou este espaço para mim neste preciso instante, de tão lindo que é. Mas não. Foram ceifadas abaixo, outras canas, para que este espaço aqui pudesse emergir e para que, posteriormente, passasse a ser um local de armazenamento de ervas medicinais, frutos secos e outras relíquias, que a natureza faz o nobre favor de oferecer. De qualquer maneira foi-me permitido que aqui ficasse a dormir. Os tempos passados neste terreno estão a ser tempos de pura aprendizagem. Não há nada tão bom como ser natural de novo. Todas as noites, antes de irmos dormir, o grupo delicia-se com o calor compreensivo das bravas chamas da fogueira que é dada à luz perto da cozinha. Numa das primeiras noites, junta-se um pequeno grupo, à volta da fogueira para a comemoração do aniversário de Luís, um amigo do pessoal que cá habita há mais tempo. Um pouco depois do jantar, todos se encaminham para ir assistir a um concerto que se dá, ali perto, na praia das Maçãs. Sinto-me mais atraído pelas brasas e fico onde estou, acompanhado agora, apenas por uma mulher mais velha, de seu nome Vanessa, em silêncio. Pode sentir-se no ar que há algo para ser dito mas entre tanta palavra por aquele sítio solta, quando todos ali estavam, nenhum de nós parece conseguir decifrar esse enigma pouco evidente. Vanessa acaba por me dizer que já se aproxima a hora de ir para casa dormir, mas, é então que começo, involuntariamente, a puxar conversa, até que acabo por ouvir algo que me desperta um vivo interesse. Vanessa falava-me de jejuns que fez, juntamente com um amigo seu, chegando a fazer um jejum extraordinário de 40 dias seguidos. Informação que, neste momento, não consigo digerir por completo. Fala-me também do Santo Daime, uma doutrina iniciada na Floresta da Amazónia por um mestre que tem como objectivo o aprofundamento espiritual do individuo. Fazendo-se rituais com cânticos e por vezes danças, tomando uma bebida feita à base de duas plantas cujos nomes são Banisteriopsis Caapi e Psychotria viridis, as pessoas alargam a sua força de expressão através dos cânticos religiosos e sentem a sua parte subconsciente da mente a vir ao de cima tendo, nesta situação, a oportunidade de dissipar os seus medos e fúrias com o poder da bebida e das canções simbólicas e redentoras.
Vanessa, ao ver que se faz tarde, fala também acerca da importância de respeitar os horários da natureza – o dia deve ser bem activo e a noite quer-se bem passiva. Assim, pode-se começar a desfrutar de uma vida mais orgânica e bem ajustada. Mas, já no que toca a horários, gosto de ter a liberdade intocada. Indo, por vezes, noite afora com pesquisas acerca de coisas que, muito provavelmente, não interessam a mais ninguém no mundo inteiro, mas, que a mim, me dão um aconchego parecido com o aconchego materno, sentido enquanto criança. Despedimo-nos e agradecemos mutuamente. Já não há nada a pairar no ar a não ser silêncio e cheiro a noite. Encaminho-me para a cama de mantas e adormeço que nem um anjo, ao som dos grilos e das canas com vento. Passa-se meio dia até que volto a despertar. Saio da tenda, sorrindo ao céu por este se encontrar completamente a descoberto e caminho em direcção à cozinha para preparar algo para comer. Quando chego reparo que Luís, o aniversariante do dia anterior, e as suas duas amigas austríacas já cá estão a tomar o pequeno-almoço juntos. Junto-me a eles. Estão a pensar em ir à praia e perguntam-me se gostava de lhes fazer companhia, ao que lhes respondo, sem mais demoras, um grande “claro que sim”. E aqui vamos nós. Em direcção à praia da Adraga, no carro confortável de uma das raparigas. Começo a aperceber-me de um silêncio fora do normal que me deixa estranhamente ansioso. Mas rapidamente me passa esta gélida ansiedade quando uma das raparigas me aquece, com um olhar impensadamente sensual. Não há reacção pela minha parte, a não ser uma leve erecção, mas, estou num estado de let-go tão bom que nem essa excitação tem o poder de me revolver na mente. Caminhamos pela praia, calmamente, e, quando vemos Luís a apanhar o lixo que se encontra na areia, achamos, por bem, começar a fazer o mesmo. Caminhamos pela areia morna, até não podermos passar para além das rochas. Ficamos, então, na parte final da praia, onde ninguém está, para além das poucas gaivotas.
Estava uma tarde tostada de maresia e tinha recebido a notícia mais bela para o momento. Nessa noite jantei em casa de Augusto, um amigo de Luís, com ele e com as raparigas de verão. Cantaram-se os parabéns e brincou-se com os miúdos. O jantar deslizou silencioso, como uma tentativa de meditação. Mais tarde Rachel, a rapariga loura, leva-me à minha nova casa, de carro numa condução lenta e fresca naquela noite quente. Quando lá chegaram, depois de se despedir delas, foi caminhando pelo longo caminho de ervas até ao circulo da fogueira onde todos estavam sentados a desfrutar daquela existência estrelada e flutuante. Luís dá-me o número de Jorge, o mestre do Santo Daime, que vivia no Guincho, no Jardim de São Francisco, onde alguns dias depois viria a ter o meu melhor presente de sempre e onde viria a conhecer Cristina. Abraço Luís, em despedida e agradeço-lhe a sua presença, juntando-me ao grupo sentado na terra batida. Depois de se brincar um pouco com a existência e eu sentir as vibrações vindas daqueles seres silenciosos de Sintra, juntando-me a eles também na sua vibração calma e sendo aceite naquela terra solta por uma simples empatia divina que se fez sentir naquele sítio lindo. Mais tarde algumas pessoas, de entre elas raparigas, foram-se embora, Rod e Orlando ficaram comigo, em silêncio, à volta do fogo com um brilho nos olhos.  Eu e Rod demos um abraço cheio de energia e amor por tudo fluir de uma maneira natural e simples. Fomos dormir. Nos dias seguintes passava maior parte do meu tempo na tenda a meditar e acendendo uma grande vela que tinha trazido da cozinha, procurando sempre o silêncio, e descanso da mente e reparo que naquele cenário de natureza e amizade era fácil encontrar a frequência desse silencio e descanso da mente. De vez em quando, saia da tenda, ia até à cozinha improvisada, buscar algo para comer e de seguida, dirigia-me para o meu canto de meditação. Durante três dias fiz essa prática sentindo o derradeiro dia a aproximar-se de uma maneira eternamente invisível, como o vento. Dia treze, depois de ter falado com Jorge ao telefone e ter combinado encontrar-me com ele um dia antes, pela manhã solarenga, levantei-me e saudei por estar a fazer aquilo que realmente queria da vida e, depois de comer e esperar pela hora, pedi licença a Lourenço e levei uma bicicleta emprestada com a qual chegaria ao Guincho, depois de um longo esforço, por entre vastos arvoredos e falésias despenhadas sobre a sua própria existência. Um longo caminho alcatroado com o sol sempre lá ao fundo. Falei, por telefone, com Jorge e combinámos encontrar nos à porta do parque de campismo do Guincho. Passado um pouco Jorge aparece de mota e eu sigo-o, tentando acompanhar a sua velocidade. Sinto-me um tanto fascinado com a beleza do sítio onde este homem vivia. Uma bela piscina logo à entrada e um cheiroso jardim com variados estilos de plantas à volta de um relvado fresco. Havia apenas arvoredo ali à volta mas não havia sítio mais alto do que aquele por ali, o céu abria-se sobre as cabeças num rasgão vasto e claro.
Andámos um pouco por ali e entrámos, de seguida, para a sala dos rituais, ou melhor, a sala onde toda a magia viria a acontecer dias mais tarde. Falámos um bom bocado sobre o ritual e sentia-me bastante animado com a repentina novidade da existência de toda uma atmosfera espiritual, uma atmosfera xamânica. Jorge disse-me que a sessão custava dez euros, se não se pudesse dar mais para contribuir com os gastos de mandar vir ou ir buscar mais bebida à Floresta Amazónica, onde os indígenas fazem o feitio da bebida usando dois tipos diferentes de plantas e fabricando esta bebida esverdeada e um pouco azeda conhecida como uma substância enteogénia e não alucinogénia por ser mais focada no desenvolvimento espiritual da pessoa. Por fim despedimo-nos e dou aso a uma aventura de volta. Já a voltar passa por mim um jipe que me buzina mas não consigo olhar a tempo de me aperceber de quem vai lá dentro, antes deste passar. Continuo a minha viagem de regresso e quando, por fim, lá chego, encosto a bicicleta, dou as boas noites ao pessoal e, depois de comer um pouco do jantar vegetariano que tinha sido feito, junto-me ao grupo da fogueira. Os dois dias passaram rápido, aprovei-os para trabalhar mais um pouco em mim e no meu belo dia de anos, dia 15 de Junho, fui caminhando para apanhar o autocarro, aconselhado por um amigo meu que tinha dito que havia ali perto uma paragem onde podia apanhar o autocarro que parava à entrada da vila onde Jorge vivia, vila esta chamada Areia e, então fui a pé pela tarde de verão até à paragem e esperei o autocarro vir. Depois de falar com um dos rapazes que estavam também na paragem, apercebi-me de que o autocarro iria demorar umas quantas horas por se tratar de um sábado. Assim sendo, começo a andar em frente e a pedir boleia. Como estava calmo e passava uma vibração pacificadora, consegui chegar ao destino apanhando três boleias, cada uma delas dada por uma pessoa distinta e única, três mundos que me levaram ao Ritual. Por fim, deixam-me à entrada da Areia e começo a andar por aquelas ruas mas tudo me parece igual e, às tantas, sinto-me meio perdido naquele labirinto de arvoredo e muros. Por fim passo por um minimercado que reconheço e acabo por ir dar ao Jardim de São Francisco com um sorriso de alegria misturada com mistério, estampado no rosto. Quando chego ao relvado encontro um rapaz sentado, de seu nome Gonçalo e, depois de perguntar por Jorge e não saber dele, sento-me também no verde. Começamos na conversa, falamos sobre trabalho e morada. Gonçalo já conhecia a o terreno em que agora eu vivia há mais tempo do que eu. Por fim, Jorge chega, sorridente, perguntando-nos se queremos dar um cheiro de rapé. Pergunto do que se trata mas Gonçalo incentiva-me a segui-los de qualquer maneira. Entramos na sala e Jorge, usando um canudo de madeira com uma ponta encavalitada, onde o pó castanho de rapé estava posto e sopra-o para a narina de Gonçalo e depois para a minha. Tratava-se de tabaco puro, moído, que depois de inalado dizia-se estimular a energia do “Terceiro Olho”, ponto forte e crucial, situado entre o sobrolho que está ligado ao poder que nos permite intuir as coisas com uma consciência e uma clareza rara. Voltámos para o relvado e, enquanto estávamos a consagrar Santa Maria ou, falando em calão, a fumar erva, Ina, uma mulher alemã de cabelos compridos brancos que também participaria no ritual, passa por nós, e pára para nos cumprimentar e para me conhecer visto que Gonçalo e ela já se conheciam. De seguida pega numa viola que estava por ali e continua a andar, com um sorriso sábio. Começam a chegar mais pessoas todas vestidas de branco, com um ar um pouco sério, para mim, fazendo-me sentir um pouco retraído, mas, afinal, era o meu dia de anos e, lembrando-me disso, recompus a minha tranquilidade e alegria facilmente por superstição ou inteligência. Era para mim uma noite de bênção e nada poderia mudar isso. Acabámos por entrar todos para a sala do Ritual e sentar-nos nas cadeiras à volta da mesa onde os pequenos livros das orações que viriam a ser cantadas, os Hinários, estavam pousados. Havia velas e copos com água na mesa, imagens de santos nas paredes e todo o tipo de coisas misteriosas e interessantes. Jorge estava sentado à cabeceira da mesa e declarou que aquele ritual se trataria de um Trabalho de Concentração, como acontecia todos os dias quinze e trinta de cada mês, mas aquele preciso dia era único e mágico para mim mais do que qualquer outro. Começámos a cantar as orações e ao fim de umas dez cantadas, tanto sentados, como de pé, enfileirámo-nos para ir tomar a primeira dose da bebida. Na minha vez, Jorge derramou apenas uma pequena quantidade para o pequeno copo de vidro. Recebi o copo com a mão esquerda, benzendo-me com o copo na mão como é hábito fazer-se nesta doutrina e bebi, de seguida, pela primeira vez, aquela bebida selvagem e interessante. Voltámos todos a sentar-nos nas respectivas cadeiras e recomeçaram os cânticos, desta vez mais centrados no ritual em si. A uma dada altura reparei repentinamente na minha nova experiência, enquanto cantava: uma sensação em que o meu corpo simplesmente existia naquele momento, para servir de base à minha voz e, antes de mais, à minha consciência, começando a sentir a minha presença de uma forma clara mas começando a “minha pessoa” a tornar-se cada vez mais longínqua e irrelevante. A meio do ritual Jorge vai buscar três ou quatro cigarros de santa Maria e umas pequenas conchas que serviriam de cinzeiros. A Santa Maria é acesa, consagrada, passada e finalmente orada com o auxílio dos hinários que também continham orações dedicadas a esta Planta de Poder. Depois da segunda dose de Daime ser tomada por todos e eu me sentar, sou mergulhado numa espécie de transe que me faz parar de cantar e me fecha os olhos levemente como a energia de uma presença doce e materna, sinto-me mergulhado num banho de luz infinito, quase palpável e, apesar de não conseguir acompanhar os outros nos cânticos, não me sinto nada desvalorizado, pelo contrário, recarregado de uma energia que eu desconhecia e que, aparentemente, era mais forte do que tudo o resto, encontrava-me mais e mais concretizado pela vasta energia vital que tomava conta de mim naquele momento. A partir do momento em que Cristina, uma mulher brasileira de cabelo encaracolado e um sorriso nos olhos, tinha aparecido na sala, antes mesmo do Ritual ter começado e eu ouvir a sua voz entusiasmada e animada que tinha sido atraído por algo acerca desta mulher e que agora me olhava deslumbrada, sorrindo-me por entre as velas e todas aquelas luzes que tinham aparecido entretanto em tom de convidadas especiais inesperadas. Depois da terceira dose ser tomada, deitei-me num colchão, a um canto da sala, a disfrutar do meu presente de anos dado pela si cronicidade da existência, da natureza, de olhos a brilhar. A um certo ponto, estando deitado, senti uma certa energia vinda da mesa e das vozes tresloucadas no ar que me estavam a chamar, a pedir que regressasse ao grupo. Por fim, levantando-me, aproveito para ficar de pé, como os restantes já se encontravam, pego no hinário, espreito a página em que está a oração a ser cantada e junto-me ao uníssono de uma forma suave, quase alquímica. Por fim o ritual é encerrado e, depois de alguma fraternização entre todas aquelas pessoas em busca da iluminação espiritual, alguns vão para casa de carro e os restantes vão buscar colchenetes e lençóis para dormir naquela sala abençoada. Cristina deita-se perto de mim e eu sorrio por dentro por tudo estar a correr de uma forma tão mágica. Na manhã seguinte, quando acordo, reparo que só há mais uma pessoa para além de mim, a dormir ainda – Leonardo. Levanto-me, arrumo a minha cama provisória e dirijo-me à cozinha anexa onde avisto e pego numa maçã vermelha de verão, da fruteira. Vou para o exterior, sentar-me na relva, ao sol matinal. Entretanto Leonardo chega, senta-se também e apresenta-se. Mais tarde apanhamos boleia de Zé, um outro frequentador da doutrina e vamos buscar Cristina a casa para irmos para a praia. Saboreamos um pouco do fim de tarde, sentados nas rochas de uma praia de areal escasso e observamos o mar que ondula eternamente ao sabor da sua força. Cristina toca o seu pequeno jambé, sentada numa rocha distante do nosso grupo. Quando anoitece vamos jantar a casa de Cristina, onde acabamos por dormir, depois de cantarmos todos juntos algumas orações como “O Daime Eu Tomei” e “Shangô”. Nessa mesma noite, antes de nos irmos deitar, vou até ao quarto de Cristina e pergunto-lhe se posso dormir na cama dela, em vez de dormir ao frio na sala, com Zé e Leonel. Ela concede-me esse privilégio, fazendo antes uma pausa, talvez de admiração, apontando por fim para a cama com um sorriso nos lábios como quem diz “Bem Vindo”. Rio-me e salto rapidamente para debaixo dos lençóis verde vivo, aconchegando-me lá debaixo como que enroscando a minha alma na cama. Por fim Cristina deita-se e apaga a luz do candeeiro. O sono não surge logo e penso por instantes na realidade em que vivia ainda há pouco tempo, vivendo em casa da minha mãe, como quem olha de repente por uma janela de um andar muito alto durante um par de segundos. Sinto a energia de Cristina a impelir-me para que me chegue mais a ela. E vou-me chegando até que os corpos se tocam infimamente. Cristina está de costas e eu solto uma tentativa de considerar a realidade da situação e assim ultrapassá-la: “Isto é muito estranho, não é?”. Ela ri-se baixinho e concorda. Mas apenas num tom de criança marota e despreocupada. Sabendo os dois que aquela situação nos agradava, adormecemos tranquilos. Nos dias seguintes Cristina vai dar algumas aulas ao ginásio onde é Personal Trainer enquanto Leonardo, Zé e eu vamos até ao café mais próximo, pela manhã, beber um sumo de laranja natural e passeamos pelas ruas daquele sítio cheio de àrvores e com a serra ali mesmo. Sintra.
Os dias foram passando e as coisas floresceram entre mim e Cristina de uma forma espiritualmente perfumada. Zé e Leonel foram para as suas casas após dois dias. Comecei a viver com Cristina, sem que nada precisasse de ser combinado, e a frequentar a doutrina mágica em todos os rituais possíveis. Comecei a frequentá-los na época do ano em que havia mais Trabalhos do Santo Daime, como a doutrina tinha por hábito chamar os rituais, começando no dia quinze, que se tinha passado, passando também por dia vinte e três e vinte e quatro, ainda dia vinte sete e terminando a época intensiva dia trinta de Junho. A maior parte desses trabalhos foram feitos em Azeitão, numa sala bem maior do que a do Jardim de São Francisco e com o dobro ou o triplo das pessoas que tinham ido da primeira vez. Conheci muita gente nova e integrei-me numa nova percepção de existência, sentia-me puro física e espiritualmente porque, para além de tomar a bebida do espírito, andava a fazer uma dieta vegetariana desde que tinha saído de casa da minha mãe e encontrava facilidade em soltar as amarras que a sociedade me tinha ensinado à medida que crescia no seu seio, durante os rituais, sentindo a minha nova liberdade de estar a viver em Sintra e de não estar dependente de ninguém. Todas as pessoas da doutrina daquele grupo me saudavam por estar firmado no coração e ser uma pessoa coerente. Sentia-me obviamente feliz com todo aquele novo cenário apesar de, naquele novo Terreiro, ter de dar trinta euros por cada Ritual. Todos os trabalhos eram divinos. Um deles foi feito num espaço entre as árvores, no meio do mato, onde cheguei a sentir aquelas árvores a emanarem energia directamente para o centro do grupo enquanto este cantava. Estava um calor infernal mas nós estávamos a sentir-nos no paraíso. Quando houve sessões nos dois dias de um fim-de-semana, maior parte das pessoas alugou um quarto no grande casarão, o único por sinal, que era dos donos da sala onde se faziam os Trabalhos. No sábado à noite, depois do Trabalho, eu e Cristina fomos deitar-nos numa rede que estava presa a umas árvores, perto de um forno de lenha, no jardim da grande casa e consagrámos Santa Maria enquanto nos riamos do som que as melgas, subitamente, começavam a fazer.
Nos dias seguintes decidi voltar ao terreno onde tinha a minha tenda e Cristina acompanhou-me. Passámos a noite e a manhã na tenda a fazer amor e a saborear a infinita liberdade de se ser. Saímos e fomos, em silêncio, de incenso aceso na mão, tomar um banho ao riacho que passava lá ao fundo do arvoredo. Brincámos um pouco com a espuma sobre os corpos íntimos na natureza e sentimo-nos em casa. No dia seguinte Cristina tinha um treino para dar e, assim sendo, despediu-se de mim que iria ficar por ali mais uns dias. Ela pediu-me que aparecesse por casa dela e que ela também tentaria ir até ali, sendo que o melhor seria mesmo passarmos os dois a viver ali. O que nunca chegou a acontecer.
No terreno ocupado havia muito trabalho a ser feito e eu entretenho-me com isso, recebendo visitas ocasionais de amigos da Escola Secundária que tinha frequentado alguns amos atrás, como Semedo e Chinmayo, arranjando alguma erva para fumar de vez em quando. Cheguei a ir à praia com Chinmayo numa tarde em que ele lá passou com a sua namorada da altura e também recebi Semedo num outro dia em que ele lá jantou, vindo a dormir os dois na tenda, posta na praia grande, numa noite de temperatura amena. Chegámos, num outro dia, a ir à Serra de Monserrate, juntamente com Cristina, saltando o muro velho de pedra que nos dava acesso ao interior sem termos de passar pela entrada principal onde nos obrigariam a pagar dez euros para estar em casa, ou seja, na natureza sábia. Apreciámos a cascata da serra, árvores centenárias de troncos tão imperiosos que chegavam a meter medo. Fumámos um pouco de Salvia Divinorum, num relvado que lá havia, esta Salvia tratava-se de uma planta que quando fumada ou posta debaixo da língua produzia efeitos de uma consciência fora do tempo e visões influenciadas pelas nossas vivências passadas e, por vezes, futuras. Sentimos a natureza estática ali à volta e sentimo-nos em casa. Dias mais tarde eu acabaria por ir para casa de Cristina viver, definitivamente. Uma semana antes de irmos à Serra de Monserrate, a minha mãe tinha ido ao terreno onde eu estava a viver e tinha-me oferecido uma viagem para a Ucrânia, para um campo de meditação, argumentando que aquele sítio não tinha as condições necessárias para uma pessoa normal viver. Eu aceito e agradeço a oferta de mão beijada, feliz com a experiência que agora eu sabia vir-se a avizinhar. Ir à Ucrânia passar vinte e dois dias, participando num campo de meditação que seria passado em três tipos de sítio diferentes: na floresta, nas montanhas e numa praia do Mar Negro onde a água continha uma percentagem de sal muito semelhante à da pele humana, o que provocaria uma renovação mineral da derme e epiderme. Esta água não deixava, assim, cristais de sal na pele.
Depois de contar a novidade a Cristina ela sorri e incentiva-me a ir. Pela distração que aquela nova noticia me tinha causado e por não saber que não voltaria a visitar a ocupa antes de ir para a Ucrânia, não chego a ir despedir-me das pessoas que me tinham recebido com tanto amor e carinho. Depois de preparar a mala para a viagem esperei ansiosamente. Apanhei o avião no Aeroporto de Lisboa e aconcheguei-me no assento. Fiz escala em Paris e tive de passar a noite num sofá pequeno e redondo, sem encosto, que se encontrava num dos corredores daquele aeroporto Parisiense, a tentar dormir. Finalmente cheguei ao Aeroporto de Kiev onde um rapaz, com um cartaz, a dizer “Rajneesh Tour” apareceu aos meus olhos por entre a multidão paciente. Aproximei-me e seguimos para o Jeep do rapaz russo. Na viagem até ao pé do mestre de meditação, o rapaz que conduzia não fazia ideia de que caminho tomar por não saber o local de encontro. Fez umas quantas chamadas e, ao fim de uma hora, lá chegámos ao destino. Estava uma tarde quente e agradável que se tornou um cenário bom para eu deitar a vista sobre alguns sítios, completamente distintos entre si, daquela nova terra em que naquele momento me encontrava.
Durante aquele Agosto, onde quer que o grupo de Rajneesh fosse, haveria certamente belas instalações para todos terem um sono tranquilo e refeições coloridas e deliciosas. No primeiro sítio tratava-se de instalações com vastos corredores de quartos partilhados e pequenas salas, ao cimo de cada vão de escadas, a dar para as varandas frescas. Ao início, depois e durante esta estadia, fiz uma grande mudança na minha consciência, conseguindo atingir o silêncio puro por vezes durante uma hora seguida e não frequentei mais do que sete meditações colectivas. Primeiro, senti que os outros estavam muito mais tranquilos do que eu e acabei por me irritar comigo mesmo por não conseguir acalmar-me. Acabei por ir para o quarto em que estava alojado, nessa tarde de irritação e, depois de fazer uma meditação Gibberish, uma meditação de pura catarse, sozinho, sentado na cama, acabei por me libertar da obrigação egoística de ir com o grupo para onde quer que fosse, desfrutando, por outro lado, de uma tarde doce e silenciosa, à varanda do meu ser.
Mais tarde as pessoas voltaram e depois de uma colega de quarto trazer algo para eu comer, da cantina, encaminhámo-nos para o relvado cercado de arvoredo para o qual eu tinha passado a tarde a olhar. O Satsang, que era o encontro com o Mestre de meditação, para ouvir as suas palavras inocentes e dançar asseguir, ao som de música ao vivo, tocada por pessoas que frequentavam o evento, celebrando a vida ao som da música. Passei por grandes transformações neste sítio. Depois de passar um dia inteiro revoltado com tudo à minha volta, reclamando mentalmente com tudo o que causava irritação àquele seu novo estado de consciência mais sensível, senti-me livre para viver a vida até à última miligrama. Quando voltei, nessa noite, para o quarto e me deitei ao mesmo tempo que a rapariga e o rapaz que também lá dormia, de seu nome Ojas, que tocava tambores todas as noites no Satsang e que mantinha todo o tipo de instrumentos arábicos à varanda desde os mais finos aos primitivos, senti-me altamente fragilizado e para não deixar toda aquela acumulação de energia fugir de mim, repentinamente, comecei, já deitado, de barriga para cima na minha cama, uma meditação em que apenas movia os músculos da cara a uma velocidade alucinante, incluindo a língua que parecia ter vida própria naquela noite. Estava com a energia aos saltos e os meus olhos mexiam-se descontroladamente para amainar a energia tensa que se fazia sentir. Durante o período de tempo do campo de meditação tive quatro envolvimentos românticos. O primeiro foi com uma mulher mais velha, baixa, a quem eu tratava como sendo uma xamã, quer dizer, uma pessoa que conseguia alinhar as energias dos seus semelhantes conscientemente, mas que, ironicamente, acabou por ser curada por ele. O contrário também aconteceu na última noite que tinha estado na floresta, antes de entrar para a camioneta e seguir para a próxima paragem, em que, depois de uma dança com Rajneesh, nos abraçámos e Maniusha colocou as mãos a todo o longo das minhas costas e me passou um sentimento ancestral estranho, de equilíbrio, um sentimento antigo, sábio. Acabámos por nos beijar ao subir as escadas que vinham do Hall das instalações, cercadas por montanhas, um relvado vasto com alguns cavalos logo ao lado. Eu procurava o silêncio mas também o amor pela vida trazido na mão das deusas, do sexo feminino e senti-me bem por me estar a sentir próximo de uma mulher mais velha. Subimos. O corredor dos quartos era alcatifado e os quartos eram agradáveis, para duas pessoas, cada um. A sala de jantar era imperiosa. De tecto alto, de pinho esculpido, seguro. Do chão erguiam-se esculturas cilíndricas de pequenos magos de olhar expressivo. Múltiplas iguarias eram saboreadas naquelas mesas baixas e sofás suaves e familiares. Ao sair pela outra porta, entrava-se para uma larga marquize, também ela muito bem composta por construções e esculturas de madeira de pinheiro, onde se realizariam algumas das meditações matinais e satsangs.
Depois de uma longa viagem, chegámos, ainda estava claro. Eu e Prahbuddah, um mestre de Reiki, mais velho, combinámos partilhar quarto onde ficaríamos a dormir num sofá-cama largo. Eu acabaria por passar grande parte do meu tempo naquele sofá confortável, de costas bem encostadas em silêncio mental.
Nos primeiros dias acompanhei alguns amigos nas suas caminhadas até ao rio, mas passada a fase inicial, desta estadia, nas montanhas, só me apetecia estar em silêncio no quarto e assim o fiz. Fui passear num esporádico dia com uma rapariga de olhos amendoados, chamada Tantra, que me fez muito feliz naquela tarde. Apesar de irmos os dois num grupo mais vasto acabámos por parar a meio do caminho e seguir por uma rota diferente. Eu parei e Tantra, continuando a andar lentamente, virou-se para trás para me ouvir dizer “wait” na minha voz suave. Tantra voltou para traz com um riso nos lábios silenciosos, olhando-me nos olhos. Caminhámos por um trilho de pedras longo, ladeado de ameixoeiras e macieiras. Comemos frutos oferecidos pela existência e ouvimos os pássaros a cantar naquele fim de tarde. Abraçados tornámos aquela paisagem ainda mais doce. No caminho de volta os períodos de silêncio mental, para mim, seguiram-se uns atrás dos outros e a presença de Tantra era, de facto, um factor bom para que isso acontecesse. Ela tinha uma presença cintilante e mágica. Parámos para ouvir as águas de um riacho a passar. Seguimos. Chegámos às instalações, comendo um pouco e juntando-nos ao grupo do Satsang. Silencioso, sentei-me como nunca me tinha sentado. Não cheguei a formar um único pensamento enquanto o Mestre falava. Estava em puro êxtase de sons e cores com Tantra sentada ao meu lado, dando-me uma forte canalização da energia da “Mãe Terra”, a energia feminina, e podia jurar à existência que não podia pedir mais do que tudo aquilo.
Durante os dias seguintes permaneci no quarto, de costas encostadas e sentado no sofá amigável que aquele quarto tinha. Apenas procurava o silêncio porque isso me trazia prazer e tendo esse silêncio cristalino não precisava de mais nada. Era a minha realidade naquele momento. Prabudha e Sarita, uma outra rapariga russa que frequentava o campo, acabariam por me ir dar pratos de comida com medo de que eu não me estivesse a alimentar devidamente. Mas eu sentia-me mais saudável do que nunca e, na verdade, encontrava-me bastante bem de saúde. Aquele era o meu momento, o momento em que finalmente compreendia como era bom estar vivo sem ter de pensar nisso. Sarita trouxe-me fruta, numa certa tarde, e perguntou-me se poderia sentar-se ao meu lado, no sofá. Depois de lhe ter concedido o lugar, fazendo um movimento harmonioso com a mão, algo parecido com aquele que Cristina tinha feito, há algum tempo, convidando-me a deitar na sua cama, Sarita senta-se em silêncio e em silêncio permanece durante alguns instantes. Até que pergunta: “Como e porque estás nesse estado de nirvana?”. Eu respondo-lhe com silêncio, sorrindo. Dizendo-lhe, depois, que estava apenas em silêncio. Ela aproximou a sua cara da minha e beijou-me. Toquei e torneei os seus seios proporcionados e suaves. Ela saiu. Mais tarde, nessa noite Prabudha aparece todo nú no quarto e diz “good night” no seu inglês arrussado, com um sorriso iluminado no rosto. Quando ele se foi deitar, pedi-lhe que me fizesse um pouco de Reiki para restabelecer as energias. Depois de fazer uma pequena sessão, pergunta-me, gesticulando, se, em criança, tinha sofrido algum acidente ou experiência fora do normal. Lembrei-me de um episódio contado pela minha mãe, em que tinha três anos e, num passeio da creche, me tinha debruçado sobre um lago e caído na água gélida, de Outubro, que ele continha. Contei-lhe esta história por alto e ele agradecendo-me com um toque suave no ombro disse, inocentemente, “ok”. Quando ele me fez esta pergunta já estávamos deitados e a luz estava apagada. Depois de falar, fechei os olhos e de repente senti um rápido flash que foi sentido quase como um arrepio no topo esquerdo da cabeça. Com aquele flash veio um sentimento de que algo tinha sido desbloqueado. Agradeci-lhe e adormeci.
Nos dias seguintes mantive-me no quarto em silêncio até que me iluminei. Iluminação pura. Uma explosão súbita de felicidade partiu do meu terceiro olho para todo o universo. Tive uma visão em que caía com o corpo pesado e duro, virado de lado no chão depois de ouvir a minha mãe dizer algo e eu reponder, mentalmente, “na boa”. Encontrava-me em cima de um pequeno banco branco a espreitar algo sobre o frigorífico que me apareceu na visão. Ouvi uma voz suave como água a dizer “seth” e adormeci com o corpo pesado naquela realidade. Quando acordei reparei que estava realmente iluminado, nada à minha volta fazia sentido de um ponto de vista lógico. Tudo me aguardava silenciosamente e tudo colorido com uma intensidade muito alta. Andei lentamente pelo corredor e sentei-me no banco de ripas entrelaçadas, na varanda, a contemplar o estado de consciência que a coragem de começar as coisas por si, viajando de um lado para o outro, me tinha feito e me tinha feito conquistar.        

Género: 
Top