Do outro lado do amor

 

Do outro lado do amor

Portuguese

Hoje vi-a. Tal como a vejo todos os dias naquele lugar, quase sempre à mesma hora. Mas hoje ela estava diferente… Olhou-me, primeiro a medo, depois passou-lhe pelo rosto, ainda ensonado, uma sombra de dor. Parecia não querer acreditar no que via, depois baixou os olhos para não ter de olhar e então ouvi-a murmurar baixinho: “Filho da p…”

Assim ficou, por um momento, como que perdida no tempo. Voltou àquele dia. Estava tão feliz, tinha ao seu lado o homem que amava, tinham decidido casar, as amigas invejavam-na… era o homem perfeito, o seu Príncipe Encantado. Ela estava tão feliz mas foi nesse dia… uma conversa mais demorada com um amigo na festa… uma discussão que rapidamente subiu de tom… e ele bateu-lhe! Ficaram os dois parados no tempo e ele irrompeu num choro desesperado. Abraçou-a, pediu-lhe perdão – “Os ciúmes cegaram-me, não consigo ver-te perto de outro homem.” Ele estava tão abalado, ela perdoou.

Casaram, ela perdoara e esquecera mas um dia, no meio da rua, ele apareceu de repente, um homem que lhe perguntara algo afastava-se, e, sem contar, viu a mão dele descer sobre ela com toda a força, com uma raiva que ela nunca tinha visto. Arrastou-a até casa, fechou-a no quarto e passado muitas horas, já a noite caíra, veio de mansinho e pediu-lhe perdão. Disse-lhe que a viu ao longe a falar com um homem e pensou… mas não voltaria a acontecer. Só o fizera porque a amava – “És minha, quero-te só para mim, perdoa-me!”. Ainda hoje se podia ver a marca deixada pela aliança na face dela, mas ela perdoou mais uma vez, esqueceu a humilhação e voltou a acreditar.

Acreditava tanto que fazia os outros acreditar. Todos os admiravam, eram o casal perfeito, ninguém imaginava. O tempo foi passando e os seus olhos escondiam a dor que se tornava todos os dias mais forte. As sovas repetiam-se mas a culpa também era dela que não evitava as situações. E ele só fazia aquilo porque a amava, os ciúmes apoderavam-se dele, controlavam-no. E depois não era assim tão grave, nada que uma boa maquilhagem não disfarçasse e uma noite de amor não aliviasse.

A vergonha e a culpa mantinham-na presa num fino fio de consciência. Um dia preparou uma mala mas guardou-a num canto do armário do quarto, porque ele amava-a e às vezes eram felizes. Ainda há dias, já não sabia bem quando… talvez na semana passada, ou então há um mês, ou fora num outro ano?

Várias vezes a vi com aquele ar cansado de quem tenta entender, um olhar perdido de quem anda no meio de um nevoeiro que não levanta. Mas ela todos os dias baixava os olhos, conformada, e eu deixava-a ir sem dizer nada.

Ele entrou, passou por trás de mim, parou e lentamente aproximou-se. Sorriu, como quem se recorda vagamente, e beijou-me. Pôs a água a correr, despiu-se e meteu-se no chuveiro. A minha imagem foi-se desvanecendo à medida que o espelho se embaciava.

Deixei de a ver e sorri como quem acorda serenamente de um longo sono. Fui ao quarto, peguei na mala esquecida no canto do armário, olhei as chaves pousadas na mesa onde as deixava todos os dias quando entrava, e saí.

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