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A primeira lembrança que eu guardo da nossa infância, começa na praia. Nosso pai nos levava sempre que podia. Nessa época, éramos apenas três. E foi quando aprontamos as primeiras peraltices. Não sei como, me separei da mãe e fiquei perdida na praia. Devia ter uns três ou quatro anos. Uma senhora me encontrou e ficou comigo, até que a mãe me encontrou. Depois de alguns dias na praia, o Davi Nathan, meu irmão do meio, ficou gripado. A mãe pediu a ele que fosse buscar o xarope, que ficava na boleia do caminhão do meu pai. Ele saiu correndo, encontrou o xarope e tomou todo o conteúdo do frasco. Até por isso, sempre dizíamos que ele nunca ficava gripado.
Nossos brinquedos eram os mais simples possíveis. Quando chegou o Natal, estávamos ansiosos para ver o que o Papai Noel havia nos trazido. Procuramos pela casa toda e os meus irmãos descobriram, escondido embaixo da cama, dois caminhões de madeira, imitando o que nosso pai tinha. Eu ganhei um carrinho de boneca, também de madeira. Bonecas eu também não tinha. Numa viagem que fizemos à Porto Alegre (e a viagem era longa) eu comecei a ficar impaciente. Então minha mãe pegou algumas roupas e improvisou uma boneca de pano. Eu achei que podia fazer melhor. Então desmanchei a boneca e tentei fazer de novo. Claro que não consegui. Meu pai transportava gasolina no tanque do caminhão. Na volta para casa, minha mãe perguntou se eu queria voltar com o pai. Eu disse que não. Nessa época, a minha intuição já funcionava. Meu pai capotou o caminhão, que despencou em um barranco. Ele não se machucou, mas se eu estivesse junto, ele teria caído por cima de mim.
Fomos crescendo e precisávamos inventar outras brincadeiras. Para o meu irmão Naor, a mãe montou uma oficina de marcenaria. Com soldador elétrico e tudo o mais. Era ele que fazia os meus brinquedos. Cortava as latas de azeite e com elas fez um fogão,que funcionava com álcool, uma geladeira (gelava com pedras de gelo) e muitos outros brinquedos que ele inventava. Até que certo dia, eles resolveram que queriam trabalhar. Como eram muito pequenos ainda, a mãe só permitiu que fizéssemos picolé e vendêssemos para a gurizada da vizinhança. E eles iam lá comprar. Quem ficava com o dinheiro era quem abria a porta primeiro. Num desses dias, eu fiz uma venda e guardei o dinheiro no elástico do pijama. É claro que não deu certo. Perdi o dinheiro e o direito a vender picolés.
Tínhamos no pátio de casa um enorme pé de abacateiro. E ali vinham se aninhar várias pombas. Elas eram mansinhas e os amigos do Davi resolveram que queriam comprar. Ele vendeu a primeira e no que pode, ela voltou para o pé de abacateiro. O amigo do Davi foi lá em casa muito triste, dizer que a pombinha tinha sumido. Negociante como só ele, resolveu vender a pombinha novamente. Não precisa dizer que ela sempre voltava e era vendida de novo...
O mais engraçado de tudo, era que o Davi era muito esperto. Nos dias de chuva, ficávamos dentro de casa e tínhamos um baralho com figuras de animais. Era um quarteto. Tínhamos que jogar entre quatro e perdia quem ficava com a figura do mico preto. Não sabíamos o que ele fazia para ganhar sempre. O que acontecia era que ele tinha uma memória muito boa. Ele perguntava para um de nós, se tínhamos determinada carta e se não tínhamos, sobrava apenas três alternativas. Com um dos outros três, a carta tinha que estar. Na próxima rodada, ele perguntava para outro e acabava sempre formando vários quartetos. Quem ficava com o Mico Preto? Com certeza, sempre era eu.
E assim se passaram alguns anos. Minha irmã Zair nasceu e eu fiquei encarregada de cuidar dela. Um dia, coloquei-a dentro de uma caixa de papelão, que estava do lado de fora da cozinha. E ficamos brincando. Foi então que fomos surpreendidas por um boi bravo que entrou pela porta da garagem, correu pelo pátio e veio em minha direção. Não tive tempo de retirar a mana da caixa. Corri e fechei a porta. O boi passou correndo pela caixa e não viu a criança que estava lá. Na nossa rua sempre passavam as tropas (não as de Elite...) mas as boiadas que iam para o frigorífico.
Nossos pais e vizinhos sempre gritavam para corrermos para dentro de casa e fecharmos as portas. Olhávamos pela janela, aqueles imensos animais invadindo a rua e as calçadas.
Mana, se estiveres lendo isso, quero que saibas que eu não fiz de propósito te deixar lá, mas eu fui surpreendida e a primeira coisa que fiz foi correr.
Débora Benvenuti
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