“Das Cinzas às Cinzas”
Quando me aproximei da casa, vi que o primeiro andar realmente, ardera quase todo, como me haviam dito.
Toquei devagarinho no no portão semi solto dos gonzos, rangeu há minha passagem, como se de dor se tratasse.
Apesar de ser Setembro, o frio veio como outro mês, outro dia.
Da porta, saiu o gato, sobrevivente do incêndio, com o pêlo chamuscado e parcialmente cego. Olho-me, mas o olhar daquele olho direito, cego, trespassou-me a alma, como se visse por dentro de cada um.
Entrei, para o que fora o Hall, a porta cedeu docemente, e fui atingido pelo forte cheiro a queimado. A água ainda corria, pelas paredes. Até, porque não fora há muitos dias…
O gato seguiu-me, a uma distância considerada razoável, segundo os seus padrões, não ao ponto de lhe conseguir tocar, mas de o sentir a observar-me, através daquele olho azul dolorido, de quem vê e não espera mais nada.
Os passos tinham de ser calculados, havia tábuas soltas e paredes prestes a a desfazerem ao mínimo movimento, só ele, o gato, parecia saber exactamente, aonde pisar, zombando da minha insegurança.
Do chão, apanhei algumas fotos, algumas apenas corpos, outras, só cabeças, parecia que o fogo construíra um puzzle propositado.
Quando entrei na que fora a sala de jantar, agora negra e despedaçada, vi o espelho e o louceiro, a mesa, tive uma estranha sensação de atravessar o Tempo, e vi todos, sentados, nos seus lugares, na mesa posta, com o melhor serviço e os melhores copos de cristal, e os talheres de prata.
O Senhor, à cabeceira, as duas irmãs, quase iguais, da roupa à expressão, no lado direito da mesa, a sopeira, o decorrer do jantar, quase sem palavras.
E eu e o gato, sentados, um ao lado do outro, na cadeira de esquina, ao lado do candeeiro, observando, sem ser observados. Vendo a acção a decorrer desde do jantar até o recolher aos quartos, agora totalmente engolidos pelo ímpeto das chamas.
Foi na obscuridade que caiu sobre a casa, que dei conta, o quanto desconfortável eu estava, com o fato molhado e o sobretudo, ainda vestido.
Levantei-me, atravessei a sala, a casa agora às escuras, com todo o cuidado, saí para o jardim perfeitamente simétrico, deleite das duas irmãs.
Só quando toquei novamente no queixoso portão, percebi que me transformava, lentamente em cinzas, e o último vislumbre que tive foi o gato a lamber com um esgar, algumas cinzas, que lhe caíram sobre o pêlo.
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