A luz do ecrã eleva-se na voz. Sons de paisagem longamente distante e sofregamente desconhecida.
Pela janela entram os pezitos sorrateiros de um espírito que se diz de paz.
É Natal aqui e é Natal lá. Ou talvez seja Natal lá. Não sei.
A mesa tem marcas de gestos, pó de caminhares e uma longa toalha branca. Na loiça molhada reflectem-se sombras, pausas, bocas que sorriem enquanto os olhos piscam.
Há nos lábios…ecos que serão de árvores primeiras, de velas sem luz ou de mágoas que se lavam no rio ao fundo.
E as palavras…as palavras desenham-se no trémulo franzir do dizer. As palavras caem, rebolam, erguem-se e…algumas voltam a tombar.
E sem surpreender no falar, escorre a mensagem, primeiro embargada, depois largada e, por fim arrancada e lançada com fúria. A fúria de quem se estatela mas sonhou com outros céus, a fúria de quem atravessa mares e se vem aninhar aqui nas palmas de uma mão ou no coração de uma mãe de sangue, de uma mãe de escolha, de um pai que se esconde ou de um amigo que se sabe eterno. Eterno na ausência de hoje ou, quem sabe, eterno na presença de um amanhã que poderá sê-lo.
No peito de quem enche o ecrã há um murmúrio, um murmúrio que se fará letra e, agora um nó que se desata e um desejo que se anuncia.
Um feliz natal e um próspero ano novo para os meus pais e irmãos….
E eu, menina pequena, cresço do sofá junto àquela mesa com uma toalha branca. Abro e fecho os olhos numa grande tentativa de perceber. Fecho os olhos e sinto na pele a paisagem de África. Daquela África que não sei existir.
Abro o olhar e pergunto-me que fazem aqueles senhores…vestidos de uma maneira estranha e todos em fila como numa fábrica. Que fabricam eles? O soletrar? O soletrar todo igual? Para que lhes servem as palavras ou os movimentos do corpo? Será com esse corpo que desenham as saudades que dizem? Será com os meios sorrisos, que nem inteiros chegam a fazer-se, que abraçam as almas cansadas dos que longe choram a ausência?
Eles são os filhos perdidos ou não, os irmãos a quem falta o brincar e a traquinice, os amigos que se sabem algures num mundo que se estilhaça e se desfaz.
Eles vivem o tempo das armas, a incompreensão da morte sem valor.
Deles querem fazer heróis que morrem sem grandeza, sem entendimento e sem porquê.
A brisa sopra por entre os rostos, o céu, aquela água e aquele cheiro africano.
Eles são aqueles que repetem até à exaustão cansada: sejam felizes, tenham um natal feliz e um ano novo muito próspero.
Eles que só conheceram o sabor da azeitona nos braços da oliveira, eles que da terra sabem o sabor dentro de uma malga, eles que da vida só conheceram o sol que queima, a lua que se embeleza e a sobrevivência de uma brasa que envolve a comida com o amor migado no fundo de uma panela.
Eles são agora a luz no meu ecrã, as lágrimas que me queimam, a incerteza que se levanta e numa imensa interrogação. Percebo que são tropas, tropas enviadas para aquela terra que não sei, em nome de algo que não vejo, tentando acordar a vida em nós que os esperamos em desespero e com a esperança a delirar. Eles estão em guerra, numa guerra que não pediram nem sabem conhecer. E eu, criança pequenina guardo para sempre o seu desespero, as suas saudades e o seu heroísmo, o heroísmo de tentar viver…apesar de tudo.
Dedicado aos soldados da guerra colonial.
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