A açorda é um prato complexo. Complexo no fazer e complexo no comer.
A açorda é um mundo todo, tão grande é esta criação. A que vos vou contar é a mais pura de todas, aquela que em tempos era feita com as borras rançosas do azeite e uma côdea de pão curvada pelo tempo. Braços inteiros de trabalho foram criados e sofridos com este caldo. Nem que seja por isso, quando dela falamos, devíamos estar todos em pé, com a mão no peito a apertar o coração para nele sentirmos o bater sofrido de quem por não ter alternativa a tinha sempre que comer.
A açorda, como todos têm obrigação de saber, é espremida das planícies secas, por gente que do nada fez tudo e com o improvável fez acontecer. Desses tempos poucos se lembram. É esse aluamento que hoje nos faz sentir e estar como os outros, o sentiram, estiveram e sofreram, porque tempos de sofrimento atroz se tratara.
Jacinto d´Alho, mestre da açorda, com curso tirado e certificado pelos que dela comeram e que melhor certificado há, será o personagem deste conto.
Este Homem que alimentou os filhos a espremer planícies, fez um milagre que ainda hoje se conta lá na Aldeia dos Papaçordas. Teve nove filhos e se na altura houvesse desses jogos que agora há, de bolas mais pequenas e campos atravessados, teria tido uma equipa, até com suplentes, porque só de cachopos se tratava.
Homem do campo, porque doutro lado não poderia ser, aí nasceu e morreu sem nunca de lá ter saído. Inventou a açorda numa noite quente de verão. Parece mentira! Mas é a pura das verdades, o tempo deste acontecimento, mas mesmo assim e apesar do que vos estou a afiançar, se dúvidas houver, vão encontrar a Aldeia dos Papaçordas, algures escondida por de trás de uma oliveira e perguntem à primeira alma que virem, porque todas elas foram testemunhas deste ato de glória.
Na tal noite quente de verão, sentados os onze à volta da mesa a ver as horas do jantar passar, houve um dos do meio, porque os das pontas ou eram grandes e já não se aventuravam a comentários destes, ou então pequenos e nem cabeça tinham para isso, arrojou-se a parafrasear, e falou só para entreter nada mais:
- Porque é que todos temos de nos aqui sentar, a olhar a mesa polida do tanto limpar, se nada lá em cima há para nos refastelar?
Jacinto d´Alho, homem de muito trabalho, ouviu e sentiu. E quando um homem destes habituado a não querer sentir nada, sofre um embate de um fedelho que ainda pouco rabo tinha para nele encostar as mãos, é sinal de coisa importante. A mulher dele, Jacinta como ele, senhora de grandes e profundas cumplicidades e saberes escondidos, olhou-o, levantou-se e foi varrer, que era coisa que não gostava mesmo nada de fazer. Pior, porque como Jacinto sabia disso, percebeu logo que afinal o comentário era solene.
O que pode um homem destes (que na cozinha era proibido de entrar), àquela hora da noite arranjar para os calar. Mesmo cansado logo percebeu que palavras, não arranjaria com suculência suficiente para encher a barriga daquela gente. Não passaria por aí obviamente a solução.
Este Jacinto d´Alho e só este, porque na Aldeia outros havia, sempre teve uma enorme e fértil imaginação. Enorme, em contraponto à sua fraca figura e imaginação, porque só com ela seria possível suportar a vida de miséria e de trabalho daqueles tempos e daqueles lugares.
Assim, e após uns breves instantes até para os que à mesa estavam sentados, levantou-se, rodopiou sobre si próprio como que a tomar embalagem, embora nós saibamos que foi só para ganhar tempo de pensamento e dirigiu-se ao quintal.
Bom quintal não será bem o termo, porque os dois canteiros, um de cada lado da porta onde estavam umas ervas boas, será demais. À noite, como os gatos, as ervas também são pardas, isto não é para notabilizar a escolha, porque com a falta de vista do Jacinto, de luz e o avançar da hora, foi mesmo o que veio à mão.
Esta escolha, e vamos continuar a achar que foi mesmo uma sábia escolha, revelou-se mais tarde de menor importância, pois ervas destas há muitas e como tal, pouco ou nada contribui-o para a notabilidade do prato. O que veio à mão foi mesmo uma meia dúzia de pés de coentros, daqueles já a querer espigar da falta de água, mas com um aroma que apetece abrir a boca e comer. De volta a casa, com os nove sentados à mesa e a mulher a levantar uma enorme nuvem de pó, de um lado para o outro, pouco ou nada havia. Mas na lareira acesa apesar do calor, estava pendurado, mesmo ao lado do lugar das chouriças, uma réstia de alhos depenicados. Cá em baixo, ao lume, um púcaro de barro com tampa de lata, tinha lá dentro água a borbulhar.
Não há nada melhor que antes de deitar,
se não beber um golaço de água a borbulhar.
Faz-nos descanso sentir o estômago quente
mesmo que lá dentro não haja nem pão,
nem uma pitada de um qualquer gosto ardente.
Desviou o olhar dos alhos e procurou Jacinta, mas ela estava a varrer o quarto e que mal que lhe calhou. Sabia ele que depois de espremida a oliveira de fronte da casa, espremida e bem espremida, ainda deu um garrafão mal medido de azeite. Procurou-o nos buracos mais escondidos e lá o encontrou. Foi ele que o lá pôs mas já vai tanto tempo que mal se lembrava. Ao canto da lareira lá estava outro púcaro, este com tampa de barro, encostado para não apanhar muito calor, com o pouco sal que sobrou das tais chouriças que só lá deixaram o lugar. Na gaveta da mesa, onde os nove se aguentavam, sabia ele que haveria de encontrar umas côdeas de pão, que nem os ratos se atreveriam de roer de duras que estavam, essas eram certas.
E pronto, inteligente como era, não foi difícil juntar o que tinha. Mas com os tais nove a olhar, alguma coisa teria que fazer para os impressionar. Pegou numa tijela de barro, que se encontrava virgem de servir desde o enxoval e com o cabo de uma faca, lá esborrachou os alhos cascados e tudo, os coentros e o sal.
No tal púcaro de água a borbulhar, lá foi deitar esta massa que tanto lhe custou a imaginar, deixou ferver, por breves momentos. Para que a fome não se encostasse definitivamente às costas, apreçou-se ao púcaro tirar das brasas, fracas que teimavam em não apagar.
Púcaro na mesa, que imagem tão bonita, preto por fora, mas lá dentro o cheiro do alho e dos coentros deixou desde logo alguns a salivar. O garrafão de azeite, tão poupado ao ponto de alguns da mesa o terem ignorado, deixou sair um fio fino para se lhe juntar. O pão para não espapaçar foi deitado por fim, mesmo antes de servir.
O manjar, hoje rico, mereceu prato e colher. Não sei se foi da fome, ou da saudade de ver a mesa posta e composta pelos lá de casa, mas este caldinho comido nesta noite quente de verão, soube muito, tanto que ainda hoje me lembro, como se tivesse sido esse agora acabado de comer.
E foi assim que Jacinto d´Alho, marido da Jacinta como ele, pai e mãe de nove filhos, todos vivendo na Aldeia dos Papaçordas, tiveram a seriedade de numa noite quente de verão se reunirem todos, neste ato solidário com a fome e criar o melhor dos caldos, a Açorda.
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