Gravata
Naquele dia bem podia ter sido atropelado, arrastado por uma cheia, acusado de assalto à mão armada. Que, ainda assim, o peso que carregava consigo era infinitamente superior.
Chegou ao quarto, tirou o nó da gravata em frente ao espelho, despediu-se do “ele-de-dia”. Odiava aquela fita, aquele olhar que o fitava de volta e lhe dava a certeza do fracasso que era. Gravata… Logo ele. Prometeu ao pai que se faria um senhor daqueles que usam gravata, mas isso foi porque ele estava a apodrecer naquela cama de hospital… e ele tinha só 5 anos.
O que fizera dele este bicho? Gostava da tinta, das mãos na tinta, da tinta na tela. Isso era ele. Não este ser incriminador que, de cada vez que olhava a superfície polida à sua frente, o julgava. Este farrapo humano de gravata nova que lhe ofereceu a tia pelo natal.
Natal… Fazia questão de desaparecer de casa nessa altura. As filhoses, a canela em pó e a hipocrisia sempre lhe fizeram comichão. De modo que as prendas chegavam invariavelmente num caixote de papelão de bananas da mercearia do tio. Todos os anos gravatas. Eram eles quem o tornava nisto, aquela nulidade de gravata de bom gosto. Porque tinha riscas fininhas. E era isso que ele entendia ser o bom gosto em gravatas. Pelo menos foi o que ela disse naquela noite quando lhe pediu para nunca usar uma.
Maria ou Íris, nos dias em que estava nostálgica, eram os nomes dela. E ela era o único pedaço do ele que ele gostava. E ele gostava dela. Mais até da Íris do que da Maria. A Íris parecia sempre deixar escapar sem querer as maiores verdades e segredos do mundo, sem saber como. A Maria era fria, para dizer o menos. Sabia que o tinha ali, a um olhar de distância, e ainda assim feria-o com a ausência calculista de quem sabe que o que quer encaixa na perfeição do querer do outro, mas encarrega o destino – em que, estranhamente, só a Íris acredita – de decidir o fim.
Lembra-se agora e tem saudades dela. Ainda leva agarrada ao pescoço a última lágrima que ela lhe deu na despedida na gare. E ao fim de tudo, aquela gravata a enchugá-la todos os dias.
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