Desconcerto
Neide Heliodória
Feito um gato sem dono ele perambulava pelo apartamento tentando afastar noite insone. Em vão. Chá de camomila, maracujá com açúcar, a caixa do Lexotan vazia, semelhante ao seu coração.
Ele então recapitulava aquele encontro inusitado ao final da tarde que se desmanchava melancólica e lânguida. Ele se fez de rogado frente ao anúncio dito pela voz da intuição que não cessava de avisar surpresas, desconcertando suas certezas.
O homem logo reconheceu a moça entre tantas outras e a fez render-se aos seus encantos: um jantar nas Ilhas do Sul, cerveja para ele, bebida espumante para ela: favas contadas. Jogaram-se naquela paixão como quem se joga no precipício e quase adivinha asas para qualquer emergência. Despiram-se de urgências: celulares desligados. Mergulharam no mel que os corpos banhados em arrepios sinalizavam. Odes ao amor, ao encontro foram chamadas e compareceram ao festim. Senhas foram decifradas naquela sede física. Anjos roçavam asas ao redor. Sardas apontavam caminhos.
No afã de ajeitar o cabelo em desalinho para partir, logo de manhã, ela deixara rastros: pincéis de maquiagem, batom, toalha inadvertidamente amassada, afinal, a moça não era muito dada à ordem. E ele irritado, a olhar de soslaio proposta dela em desorganizar seu toalete, suas gavetas, sua vida tão dentro do script.
Agora, no entanto, acompanhado apenas pela inexorável insônia ele duvidava da permanência de seus traços e rituais obsessivos tão bem alinhavados no decorrer daquela metade da vida. A lembrança dela e o desejo inconfessável de revê-la diziam da sua permissão: alguém entraria naquele mundo etiquetado e promovê-lo-ia ao caos, às avessas.
Dando a noite por terminada, ele senta-se à mesa de Escritor e se põe a dizer palavras sedutoras pedindo a ela que volte a trazer aquela desordem, aquele salutar descompasso.
Ela também visitada pela noite em claro responde...
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