Caminhou em direcção à velha esplanada, enquanto tentava detectar mudanças. Surpreendeu-se com a existência daquele prédio, sorriu ao constatar que a velha praia de pescadores se tinha transformado num polo de surfistas. Madalena sentou-se na cadeira da esplanada onde há vinte anos tinha por hábito ir. Pousou o livro em cima da mesa verde e olhou em redor. Pouco tinha mudado. Revivera aquela imagem vezes sem conta mas, do que mais tinha sentido saudades, era do cheiro a maresia. Aquele cheiro que tantas vezes a tinha acalmado e que com o tempo quase tinha esquecido. Sentimos falta do que largamos mas depressa nos habituamos ao que agarramos, pensou.
Observou as pessoas que começavam a chegar à praia. Sorriu ao ver a forma como as crianças brincavam e corriam em direcção ao mar. Também ela tantas vezes tinha estado naquela situação, naquele mesmo areal. Recordou os inúmeros castelos de areia que fez, as correrias pela praia atrás dos filhos e a ansiedade que sentia sempre que os via afastar.
- Os velhos hábitos nunca se perdem, posso sentar-me?
Os anos tinham passado por ele mas era capaz de o reconhecer em qualquer lugar. Ali estava ele. O homem que um dia a tinha feito mudar o rumo da sua vida. O homem que a tinha feito afastar de tudo e recomeçar de novo, longe da vida que conhecia e de que tanto gostava.
- Mas claro que podes. Como estás?
- Mais velho mas isso já deves ter reparado.
- Estamos os dois, meu caro.
- E linda como sempre.
- E tu não perdeste o charme
- Não me digas que costumas vir aqui muitas vezes. Se o disseres atiro-me ao mar.
- Não vinha cá há cerca de vinte anos. Hoje resolvi voltar mas podes sempre dar um mergulhito!
- O que é que te aconteceu? Procurei-te por todo o lado durante tantos meses.
- Queres que comece por onde?
- Por onde quiseres. É raro o dia que não pense sobre a forma como te perdi.
Observava-o escondida nas lentes escuras dos óculos que usava. Procurava aquilo que a tinha feito vibrar há cerca de 20 anos atrás e percebia que restava um carinho muito especial. Era mesmo isso um carinho muito especial. Continuava cuidado e gentil. A cara enrugada não perdera a expressão e os olhos continuavam expressivos. Ao longo do tempo a imagem que tinha dele desapareceu, bem como todos os sentimentos e emoções que lhe estavam associados. Tinha perdido a referência física e com ela a referência emocional. Deu consigo a pensar que, de facto, o tempo cura tudo.
- Então? Encomendo já o jantar?
- Desculpa?
- Estás a demorar tanto tempo a começar que acho que vamos ficar aqui o dia todo.
- É assim tão importante para ti?
- Perdi-te há mais de vinte anos e procurei-te por toda a parte. É natural que esteja curioso.
- Depois de me teres ligado a dizer que não podias continuar, falei com a Raquel. Chorava tanto que ela largou tudo para vir ter comigo. Falei-lhe do que tinha acontecido e repeti vezes sem conta que só queria desaparecer. A Raquel esteve sempre lá. Recordas-te dela?
- Claro que me recordo, vocês eram inseparáveis.
- No dia seguinte a Raquel, que sempre se mexeu bem em todo lado, trouxe-me uma documentação para trabalhar numa Embaixada. Estavam a necessitar de uma pessoa e ela lembrou-se de mim. As aulas tinham terminado e era mais fácil tratar de tudo. O único senão era que me tinha de mudar de armas e bagagens para a Grécia.
- Grécia?
- Sim. E deve ter sido a decisão mais rápida que tomei em toda a minha vida. Em dois meses tinha a documentação pronta, as transferências dos miúdos feitas e a casa posta à venda.
- Eu sei. Passado 3 meses arrependi-me da minha decisão e procurei-te por todo o lado. Cheguei até a falar com a Raquel mas ela foi intransigente. Disse-me sempre que não sabia de nada e para eu a deixar em paz. Tentei faze-la ver que te amava mas de nada valeu.
- Ela contou-me.
- Contou-te?
- O ano passado, mas já lá chegamos. Mudei-me de armas e bagagens para Atenas. Comigo foram dois grupos, um que ia trabalhar para a Embaixada e outro que ia formar uma empresa. A diferença entre mim e eles era que eu ia a fugir de um projecto antigo e eles iam abraçar um projecto novo.
Quando chegámos, tínhamos uma casa à nossa espera e os miúdos já estavam inscritos nas escolas. O inicio foi difícil. Sentia-me longe de tudo e de todos, apesar de ter sido sempre muito apoiada. O que ajudou foi que os miúdos, sempre com tanta actividade, obrigavam-me a ter de contactar com muita gente.
- Sabes que nunca mais me apaixonei por ninguém?
- Eu não posso dizer o mesmo. Voltei a apaixonar-me e a casar. Conheci o Manuel no voo. Os miúdos adormeceram na sala de embarque e ele ajudou-me a embarcar. Mais tarde contou-me que conhecia a Raquel e que ela lhe tinha pedido para tomar conta de nós. Foi das pessoas que mais me apoiou e ao fim de dois anos descobri que estava completamente apaixonada por ele.
- E os miúdos?
- Os miúdos adaptaram-se rapidamente. De início chegaram-me a perguntar se ias ter connosco. Nem sabes o que essas palavras me magoavam. Mas com o tempo também eles foram esquecendo. Hoje estão ambos formados e casados. O João está agora nos Estados Unidos a fazer um doutoramento. A Alice é médica e casou o ano passado.
- Também me esqueceste?
- Os grandes amores não se esquecem. Podem acabar mas não se esquecem, e acho que foi isso que me aconteceu. Sabes que, no dia do meu casamento, dei comigo a agradecer-te por teres tomado a decisão que tomaste?
- Como assim?
- Foi a tua decisão que me fez tomar outro caminho e se assim não fosse não tinha vivido os anos maravilhosos que vivi. Até ao ano passado.
- Então?
- O Manuel sofreu um acidente de viação e acabou por morrer na sala de cirurgia.
- Lamento.
- Também eu. E, foi justamente depois da morte dele que a Raquel foi ter comigo e me contou que me tinhas procurado logo depois de ter ido para a Grécia. Pediu-me perdão por não me ter contado mas que não me queria ver a sofrer mais. Nesse dia choramos abraçadas uma à outra, eu não sei se por desespero, ou se por agradecimento. Afinal, nunca vou saber qual teria sido a minha decisão se ela me tivesse contado há vinte anos.
- Talvez tivéssemos ficado juntos.
- Não sei. Eu estava muito magoada e amargurada. A mágoa destrói qualquer tipo de relação.
- E, agora o destino juntou-nos outra vez.
- Sabes que não acredito muito nessas coisas do destino. Quem nos juntou foram as nossas decisões. Tal como foram elas que nos afastaram.
- Eras uma romântica na altura.
- E continuei a ser mas isso não implica que acredite no destino.
- E o que chamas ao facto de nos encontrarmos aqui?
- Hábitos. Eu tinha o hábito de vir aqui e tu também o ganhaste.
- És feliz?
- Pode-se dizer que sim. Vivi muito feliz durante todos estes anos e, agora que o Manuel morreu sinto-me feliz cada vez que o recordo. E tu?
- Eu nunca me perdoei ter-te deixado.
- Acredites ou não. Foi o melhor que me podias ter feito.
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