-Antónia, vamos dar uma volta?
-...
-Estás a ouvir?
-Diz...
-Antónia, andas um bocado esquisita ultimamente. Em que é que tanto pensas?
-Não sei porquê, nos meus piores momentos, sempre tive a mania de ir passear para a Baixa. Aquela mistura de luz, de barulhos, de cheiros e de gente deitada no meio da rua sempre me pareceu familiar.
-Mas tu estás louca? Como é que te foste lembrar disso agora?
-Não sei. Já há um tempo que andava com vontade de ganhar coragem para falar com alguém que dormisse na rua. Sempre me perguntei o que é que levaria uma pessoa a desistir de tudo, a desvincular-se de toda e qualquer relação com o mundo à sua volta. Ontem consegui.
-Estou a ficar seriamente preocupada contigo...
-Oh, Matilde, cala-te lá, pá! Queres ouvir ou não?
-Até tenho medo do que vem por aí...
-Pois, mas se calhar não te faz mal nenhum calares a matraca durante dez minutos e ouvires o que aconteceu.
-Matilde, mas queres ouvir ou não?
-Está bem, conta lá.
-Ontem, quando ia para o Instituto, vi uma mulher que estava deitada debaixo de uma árvore, acompanhada por um cão. Tinha uns sacos e falava sozinha. Vejo-a quase todas as semanas quando lá vou. Não resisti e aproximei-me. O cão quase que se atirava a mim. A mulher disse-lhe qualquer coisa que não percebi e o cão voltou a deitar-se. Disse-lhe:
-Desculpe, não me leve a mal mas vejo-a aqui todos os dias e todos os dias me pergunto como é que aqui veio parar. Como é que se chama?
-Amália, como a fadista. O meu pai adorava fado e quando nasci obrigou a minha mãe a chamar-me Amália.
-Eu chamo-me Antónia.
-Antónia...
-Sim. Não gosto muito mas não tive hipótese!
Ela, olhando-me triste, disse-me:
-A minha filha também se chamava Antónia.
Senti-me encolher...
-Tem uma filha?
-Já tive. Era linda. Alta, morena, de olhos pretos, cantava como um rouxinol! Quando ela passava, a rua iluminava-se! Quando ela nasceu, jurei que ia deixar a droga mas não consegui. Continuei, não fui capaz de parar. Até ao pé dela me picava...e ela, coitadinha, pedia mas eu não a ouvia. Um dia, começou a picar-se também. Disse-me que queria perceber. Que rica merda que lhe dei a perceber... acabou com ela . Uma noite depois de vir do Parque, encontrei-a parada à minha espera à porta de casa. Olhou para mim, sorriu. Dei-lhe a mão e disse-me que não fazia mal. Morreu ali .
Eu estava gelada. Não conseguia abrir a boca. Senti o meu corpo cair ao lado do dela e deixei-me ficar sentada no passeio em silêncio enquanto ela falava como se eu ali não estivesse.
-Foi preciso perdê-la para não voltar a tocar na porra do cavalo. Agora, aos poucos, vou melhor.. consigo alguma paz e só consigo isso aqui...
-Na rua?
-De manhã, quando ainda estão todos deitados, não se ouve nada. Parece que cheguei ao Paraíso, menina...
-Mas no Inverno deve ser terrível!
-Terrível? Oh menina, tu sabes lá o que é terrível...terrível é quando nos arrancam a frio parte do corpo e da alma. Depois disso, já nada nos faz doer!
-Mas não tem ninguém? Ninguém a quem recorrer?
-Quem é que te diz que eu quero a ajuda de alguém? Se tivesse querido não estava agora aqui!
-Nunca?
-Desde que percebi que estava por mim.
-Que idade tinha?
-Sei lá...uns sete... quando o meu pai morreu. Depois disso a minha mãe ficou meio maluca. Fechava-me durante dias num quarto às escuras. Só ouvia a porra do relógio de cuco que tinha sido da minha avó. A única luz que via durante semanas era a da frincha da porta fechada à chave para eu não sair. Uma vez por dia levava-me comida. Um dia fugi pela janela. Até aí tinha medo. Mas como já não via luz há muito tempo, fui com os olhos meio fechados e não vi o carro vir quando ia a atravessar. Quando dei por mim estava na cama do hospital. Assim que voltei a casa, voltou a fechar-me. Dessa vez foi no roupeiro. Pensei que morria com falta de ar. Desatei aos coices contra a madeira de tal maneira que aquela merda caiu comigo lá dentro. Os vizinhos ouviram e chamaram a polícia. Levaram-me para um abrigo de putos abandonados. Acabei numa casa de freiras mas não me dava com aquelas regras todas. Fugi outra vez e a partir daí já só voltei a ter casa quando engravidei.
-Como?
-Não sei. Senti um certo ânimo. Fui à Câmara, inscrevi-me e lá consegui uma casita pequena.
-E o pai?
-Qual pai? Eu sei lá quem é o pai! Passaram-me tantos por cima...No princípio queria dinheiro para tirar a fome. Depois quando me meti no chuto precisava de alimentar o vício. Enquanto eles faziam aquilo eu nem dava por ela. Era como se saísse do meu corpo e voasse dali para fora.
-E agora?
-Agora estou velha. Nem eles me querem, nem eu já aguentava aquilo. Vou pedindo, vou dormindo, uso as casas de banho públicas e tenho aqui o Marinho que me segue para todo o lado. E sabes que mais, menina, se calhar nunca fui tão feliz...no meio de tanta merda...
-Posso ajudá-la?
-Como, menina? Consegues ser mágica?
-Não. Acho que não...
-Pois não, menina. Ninguém consegue.
-Sabe cantar fado?
-Porquê? Queres um fadinho aqui da Amália pró caminho?
-Se quiser...
-Só se me arranjares um cigarro e me pagares uma aguardente para me aquecer a alma. Pode ser?
-Pode pois!
-Então aqui vai:
“Lisboa, terra de fado,
Das peixeiras que se levantam,
Dos reguilas que se deitam,
Do Tejo a brilhar,
De Alfama a cantar,
E eu aqui ... a apreciar...,
Tão perto do céu...!
Já não é azul-turqueza,
É um céu avermelhado,
Cheio de mistério rosado
Repleto de beleza.
São oito horas apenas
E o sol já se pousou
E Novembro ainda nem começou!
O dia a morrer, os carros a passar,
As pessoas a andar,
Mortas por descansar
E as estrelas a nascer,
A noite a crescer
E Novembro não começou
E Lisboa já se deitou!”
Fiquei siderada com a voz, com os olhos dela, com a facilidade com que as palavras lhe saiam...
-Gostaste menina?
-Muito, Amália. Gostei muito.
-Eu também. Por momentos pude voltar a ver a Antónia...
E partiu com o seu cão e os seus sacos, rumo ao Terreiro.
-Mas que história mais maluca...
-Pois é...Matilde mas são estas histórias, que apesar da dor nos fazem sentir vivos...
Matilde calou-se. Saímos e a música da Amália acompanhou os meus pensamentos até ao anoitecer.
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