Sábado à noite. Saio com uma das irmãs que a vida me deu. Jantar no Húngaro. Conversa regada a partilha de intimidades, umas cómicas, outras duras, risos, silêncios de segundo de coração apertado, experiências e conselhos trocados. Sem julgamento, sem pretensão, só com o profundo afeto incondicional de quem se conhece há uma vida. Travamos conhecimento com o empregado. Actor, professor de teatro, mas mais uma vítima da merda da crise. Há que sobreviver. Propomos-lhe contactos, oferecemo-nos como alunas. Volto atrás no tempo. Lembro-me de uma época em que gostaria de ter experimentado representar mas não tive coragem. Medo. Muito medo. Mesmo hoje não estou certa de que conseguiria. Diz-me ele que manter esse medo é bom. Deve ser sinal de que ainda há muito para sair. Pergunto-me se conseguiria. Trocamos contactos, desejamo-nos sorte mutuamente e saímos. Ficámos com a satisfação que lhe sentimos por ter podido conversar um pouco mais do que apenas sobre a ementa e ter mantido a sua identidade intacta. Somos o que damos independentemente da forma.
Calcorreamos a Baixa entregues aos risos, à música, à alegria de pessoas como nós que decidem por uma noite ser felizes ou pelo menos sair da rotina diária.
Continuamos a vaguear. Conversamos, trocamos informações com desconhecidos, observamos, estamos em comunhão com o que nos rodeia.
De repente somos abordadas por um caloiro espanhol.
- Perdona. Soy como se dice? Caloiro?
- Sim caloiro.
- Necessito ponerme un sujetador, sino me tiran a la fuente de agua fria y no me apetece. Puede prestarme lo suyo y se lo devolvo en seguida?
- O quê o meu soutien? Tás a brincar? Queres que tire o soutien pr'ó pores? Não pode ser.
- Pero porqué? por favor. Te lo quitas en el cafe. Ninguien vera que es tuyo. Por favor.
Tem qualquer coisa de inocente aquele pedido. Dá-me vontade de rir. Olho prá minha amiga que dispára:
- Não olhes pra mim. Se lhe empresto o meu, as mamas caiem. (Gargalhadas)
Ele olha-nos implorante. De repente, digo-lhe:
- Ok. Dou-te o meu soutien. O que é que me dás em troca?
- Lo que quieras. Todo lo que quieras.
- Quero uma serenata.
- Pues te la prometo.
Entro no café. Rio-me sozinha. Saco o soutien. Saio e dou-lho. Ajudo-o a apertá-lo e ele lá vai. Consegue fugir ao castigo. Volta como quem não quer a coisa. Mete-mo discretamente na mala e diz-me:
- No se los he dicho que es tuyo. Queda solo entre nosotros.
Agradeço-lhe. Acho-o doce.
Pergunto-lhe:
- E agora? Como é? A serenata?
Ele sai em direção aos outros. Vêm. Rodeiam-nos, tocam e cantam pra nós.
Parece que estou num filme. Divirto-me. Sinto-me viva. Agradecemos e seguimos. O miúdo vem atrás de nós.
- Gracias. Muchas gracias. Podemos encontrarnos después?
- Não, acho que não. Mas obrigada. Foi muito divertido.
Continuamos. O peso no coração persiste como um aviso que lá está sempre na penumbra da minha boa disposição. Pressinto qualquer coisa. Não sei bem o quê.
Descemos até às galerias. Alguém me abraça com força por trás. Por momentos penso: "Será"?
Não é. Claro que não é. Olho para trás e vejo uma desconhecida que me abraça com um sorriso de orelha a orelha. Digo-lhe em jeito de brincadeira:
- Bem já valeu a pena sair pra receber um abraço destes! Não é bem a minha praia mas soube bem! (Gargalhadas)
- Como é que te chamas?
- ...
- E tu?
- ...
- Eu chamo-me....
- És boa pessoa. Vejo-o. Tem cuidado. As pessoas podem aproveitar-se disso. Esta noite vai acontecer-te uma coisa boa. Vais ter uma surpresa.
- A sério? Já a espero há algum tempo. (O sorriso dela esmorece. Volto a sentir o aperto).
- Faço Reiky, sinto as pessoas (...)
Despedimo-nos com um abraço, um sorriso e prosseguimos.
Entramos e saímos de bares e discotecas sem parar. Danço freneticamente. Sinto-me viva mas em dor.
De repente, olho em frente e vejo-o a olhar pra mim. Viramos a cara. Voltamos a olharmo-nos. Voltamos a virar a cara. À terceira vez, esqueço-me do medo e sigo a passo firme em direção a ele.
As sensibilidades alheias....são intangíveis e no entanto....mágicas.
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