Espécie de Biografia

 

Espécie de Biografia

Portuguese
  • Texto 1

Vivemos um tempo de luzes e de trevas, de riqueza e de miséria, de comunicação e de isolamento, de liberdade e de tirania. Nunca fomos tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes. Vivemos um tempo que necessita de outras razões.

Já não nos servem as verdades definitivas de uma racionalidade geométrica. Já não nos satisfazem as certezas inabaláveis. Já não queremos um universo que funcione com a regularidade dos relógios. Precisamos de mais, novas e diferentes razões para novas e diferentes realidades.

Neste mundo enriquecido pela diversidade dos possíveis, já não têm lugar as velhas dicotomias entre o certo e o errado, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, as razões e as paixões. Em tudo, devemos buscar aquilo que, em nós Homens, é mais humano: a liberdade para criarmos diferentes futuros.

 

  • Texto 2

"Ela sabe que na tela do seu futuro se desenham novas figuras ainda sem cara. Terá que lhes dar cor, forma, vida. A cor dos seus sonhos, a forma do seu carácter, a vida do seu espírito.”

 

O vento aproxima cada fio de cabelo.

Roça-te o rosto com uma persistência incansável até já não dares por ele.
É tarde, não sabes que horas são. Estás no local mais familiar de sempre - sem que dês por isso.

Saudade de um não-sei-quê que nunca foste - quem sabe mesmo se virás a ser.
Despes-te do tempo e do teu caminho e sentas-te simplesmente. Não interessa porquê. As pessoas passam e não te conhecem - riem, conversam, alheias a tudo dentro delas mesmas.

Eis que uma te chama a atenção - ela não te reconhece, mas tu conheces as suas marcas neste mundo provavelmente mais do que seria desejável ou conveniente ou seja lá o que for.

Alheias-te dela agora. Voltas a sentir o frio que te arrepia da pele à alma - e despojada do que te trouxe, percebes para o que vieste: foi esse voo sem que sequer te levantasses, foi essa contracção, essa fimbria de reflexo do que não programaste mas concebeste que te tranquilizou, ainda que por momentos, mas fê-lo.

Viras as costas ao vento. Ele parece afogar-se em ira e empurra-te ainda com mais força.

Alheias-te. Dele. Do mundo. Voltas para casa e ficas de novo terra-a-terra.

Desprovida de asas.

Desprovida dos tais fios dançantes.

Dotado somente do que és - quer isso chegue, quer não.

 

  • Texto 3

Ser Maior é crescer mais do que a nossa medida nos permite. Ultrapassar a física e a certeza. Sobrepor a verdade é criar uma nova verdade, não uma mentira.

Ser Maior é nunca olhar como se mais altos estivéssemos, nunca pensar que estamos acima do nível do mar mas sempre aspirar a que as nossas fortes raízes suportem a nossa ambição de chegar mais perto da luz do sol. É tornarmo-nos sólidos e ao mesmo tempo dar espaço a todos os outros para viverem num ecossistema dentro de nós próprios, que nos fertiliza e faz crescer mais ainda.

Porque vemos sempre o horizonte na horizontal quando o nosso sentido de crescimento é virado para o céu?

Torna-te anormal, diferente, único e estranho para os que não crescem e só assim poderás ver que te tornaste muito maior.

 

  • Texto 4

Não procures explicação para a minha vida, nem a tomes com pena ou escândalo; quando eu ficar tão velha que pareça louca, lê neste caderno que eu tive momentos felizes.

As tuas mãos nos meus ombros, lentas como uma maldição. Os meus cabelos e os teus dedos. O teu perfume igual à minha vontade de mim.

 

  • Texto 5

Tenciono olhá-las, prendê-las, rasgá-las. Despi-las de preconceitos, arrancar cada parte, arranhar cada significado.

Rompê-las de uma forma crua, sem piedade, nem arrependimento. Quero envolver-me em cada traço, unir-me em cada intenção, em cada contexto. Com sentimento anseio ver nelas a dor, a alegria, o sofrimento.

Desejo-as a toda a hora. Sinto uma vontade irrevogável de com elas construir uma ponte segura entre o mais profundo de mim e o mais caloroso delas. Sinto-as e penso-as com uma intensidade impossível de descrever.

Palavras, sempre palavras. É impossível esconder-se delas. Impossível não entender que com elas carregam vidas.

Palavras na mais pura das formas. Só e apenas, palavras.

 

  • Texto 6

A criança que chora porque não tem o que comer. Qual é que é o problema? A mãe que chora porque não tem para a alimentar. Qual é que é o problema? O homem que chora que não tem como contribuir. Qual é que é o problema? A rapariga que chora porque o rapaz nunca chegou a vir. Qual é que é o problema? O rapaz que chora porque não encontrou o caminho para lá chegar. Qual é que é o problema? O sorriso que chora por se ter fechado. Qual é que é o problema?

O doente que chora porque não achou a cura. Qual é que é o problema? A cura que chora, porque não a quiseram usar. Qual é que é o problema? As pessoas que choram porque já não sabem sentir. Qual é que é o problema?

O problema é o mundo. E esse já não chora.

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