M.

 

M.

Portuguese

M. andava desacordada, dormente de sucedências que eram apenas contagem. Despertava ao comando sistemático de curtos espasmos de vida, brevíssimas imposições de significados que lutavam por sobreviver no balanço de um pensamento interrompido. Mais um dia havia brotado por entre os capítulos de uma história incontada, numa claridade densa, terrena, externa ao sonhador. Ele chega. A sua chegada espoleta uma clarividência transbordante, absorvente, e eis que, desse milagre grave escorre um desejo novo, uma vontade reflexa de intromissão e desespero. É o primeiro dos acontecimentos, sem meio e sem fim, todo ele esculpido a palavra, gesto, língua, beijo. Uno. O sonho principia sobre uma madrugada indiscreta, a luz é esguia e pulsante, a respiração inaudível, quente, o abraço precipitado de um sobre o outro amarra duas tácitas súplicas de desejo. Há dois amantes que se encontram, concisos, provocatórios, armados de uma culpa inofensiva e indolor, sem argumentos para ficar ou seguir em frente. Tudo ao redor grita inquietude e incerteza. Ao fundo, numa escadaria sem destino, M. irrompe num pranto delicado. Nada se eleva nessa subida inútil senão uma esperança encenada, acudindo a uma ânsia violenta de consumação perfeita. Há um mundo infundado que se antecipa aos movimentos de M., um mundo que emerge solitário, anárquico, temperado de um sentimento líquido a exacerbar a geometria dos dias comedidos. Ele aproxima-se com insuspeito rigor, premeditando o apelo do corpo destilado de M. Traz poesia no sorriso que demora a rasgar a vaga da noite e, nesse instante de absoluta irreversibilidade, devolve ao coração adormecido de M. a batida interminável da primeira dança.

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