Nan Ferdinan
QUERO ENCONTRAR-ME CONTIGO
Quero encontrar-me contigo onde não me doas,
onde as cinzas dos teus incêndios
não me azedem os olhos.
Quero encontrar-me contigo
onde me saibas a mar.
ONDE TU COMEÇAS, TERMINA O MEU CIGARRO
Onde tu começas, termina o meu cigarro.
Que bom poder apagar-te agora,
esmagar-te agora,
destruir-te agora em cinzas,
e ter-te ainda a fumegar,
lenta, ah tão lenta,
entre os meus dedos viciados.
PODIAM QUEIMAR-TE OS OLHOS OS MEUS BEIJOS
Podiam queimar-te os olhos
os meus beijos, podiam,
e eu ficar com lábios tristes.
Mas como dizer-te depois
a alegria
de te ter estremecida
a ondear sobre o meu peito?
SABES-ME BEM
Sabes-me bem,
sabes-me a dentro de ti.
Existes-me
no céu da boca:
onde ficas tu,
porto desta memória
encantada?
SE TE DISSOLVESSES EM MIM
Se te dissolvesses em mim, meu amor, e te afundasses nos meus abismos,
havias de encontrar um lugar perdido dos dois. Não me vás tão longe,
mulher. Ama-me sobre a pele, a pouco e pouco, docemente, na planície
do desejo. Se me fosses possível no sangue, meu amor, eu não te amava.
PERTO DE TI
Perto de ti,
nas tuas cercanias,
começa a eternidade.
Tão perto
que encontrar-te
será perder-me
para sempre.
NA MINHA SOMBRA
Na minha sombra
guardo os meus tesouros:
a minha fortuna,
o meu amor,
a minha glória.
Toda a luz
nesse escuro lugar
da minha alma
repousa
e se contenta.
DIR-TE-IA QUE ME LEVASSES DAQUI
Dir-te-ia
que me levasses daqui
para longe, tão longe de ti,
se eu não fugisse de mim
para perto, tão perto daqui.
(Que nestas manhãs acordadas cedo
te ausentas do meu poema
e do meu corpo
para longe, tão longe
dos lugares comuns
ao nosso amor.)
NAQUELE TEMPO, OS TEUS LÁBIOS
Naquele tempo, os teus lábios frequentavam os meus beijos e éramos
serpentinos, longos, intermináveis. Lembro-me às vezes de como te
sabias minha, tão só minha como a pele dos meus lábios frequentes nos
teus beijos. Naquele tempo, lembro-me às vezes, o desejo exilava-se nas
metástases do nosso amor e era um passageiro frequente dos teus lábios
nos meus beijos serpentinos, longos, intermináveis. Ah, como te sabias
minha naquele tempo em que os teus lábios frequentavam as metástases
do nosso amor. Ah, como morreram, frequentes, os teus lábios nos meus
beijos. Como morreram longos e serpentinos, longos e intermináveis,
naquele tempo.
TENHO O MAU HÁBITO DE TE AMAR
Tenho o mau hábito de te amar
na luxúria dos meus dedos,
assim lento, lento, lento,
como se o nosso prazer não tivesse um estuário
e o nosso amor,
esse amor desse prazer desses dedos,
fosse a ecografia de um nado-morto.
UM BEIJO IRIA TALVEZ IMOLAR-NOS
Um beijo iria talvez imolar-nos
num rodopio de fogo.
Serias capaz de confiar a tua vida
à nossa morte?
AS MÃOS DE UNS OLHOS FECHADOS
As mãos de uns olhos fechados,
tão ilícitas,
podem causar fomes e sedes
no corpo de uma mulher.
São mãos telúricas,
mãos de acaso,
que culpa têm?
Vêem com os olhos da alma,
e erram, insensatas,
sobre a planície ardente
da tua pele.
As mãos de uns olhos fechados
nunca se perdem,
nunca no corpo de uma mulher.
NO INSTANTE EM QUE OS MEUS OLHOS
No instante em que os meus olhos se trocaram com os teus, e a minha
pele se despenhou na tua pele, um estorninho perdido da esquadria do
seu bando precipitou-se para a morte nas águas de um rio frio, frio, frio.
SE EU TE AMASSE AGORA
Se eu te amasse agora com estes dedos de já te ter viajado o corpo, e com
estes lábios de já te ter capinado a pele, e com este swing de já te ter
dançado as noites e dançado os dias, se eu te amasse agora com estes
olhos de já te ter sobrevoado a alma e de já te ter observado ossos,
vísceras, estercos, ah, se eu te amasse agora, quem serias tu?
FAZIAS DE CONTA QUE ERAS A MINHA ALMA
Fazias de conta que eras a minha alma e desaparecias por mim adentro,
enquanto eu doava a minha vida ao cadáver que me deixavas nos braços.
Amei-te talvez um pouco menos do que merecia amar-te, mas amei-te as
sombras, amei-te os ossos, e amei os beijos de pedra que selaram o
encontro entre as nossas duas mortes.
SOMBRA QUIETA, DEUSA
Sombra quieta, deusa
dos meus ermos,
guardo-te para uma emergência.
Esse de mim que tu habitas
e consolas
abre-me sulcos na alma.
E ri-se.
AGORA QUE NÃO TE AMO
Agora que não te amo,
posso dizer-te onde te amei:
amei-te ao fundo dos teus olhos
- a fugir
de que me visses -,
aquietado nas cinzas
que tepidamente cobriam
a praia da tua alma.
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