Liberdade de Saúl

 

Liberdade de Saúl

Portuguese

 

LIBERDADE DE SAUL

 

Quem quisesse ver o Saul, se de dia fosse e não houvesse escola, era procurá-lo sentado numa rocha saliente, mesmo á beira das diáfanas águas do pego mais profundo da ribeira. Era ali o seu paradeiro certo; de cana na mão, quieto, muito silencioso e atento á boia, não fosse ela, num arrepente, se enterrar na mansa água, para energicamente fazer um puxo e, com sorte, tirar o guloso barbo que não segurara a voracidade perante a ilusão de um almoço grátis. Os amigos, não. Corriam em liberdade num velho campo térreo, de planura duvidosa, carregado de invisível pedrisco, qual campo minado, que bem podia num inusitado acaso rasgar a pele de um daqueles Eusebiozinhos.

- Saul o que é para ti a liberdade? – perguntou-lhe certa vez o professor. – Eu acho que é pescar! - Porquê Saul? – Porque a liberdade apenas se sente e é custoso dizer o que é.

– E jogar futebol também é liberdade, Saul?

A resposta dele foi um sim, pronunciado baixinho, sem força convicta de uma certeza, depois de fazer uma avaliação muito cuidada. - Mas não é a minha liberdade.

– Porquê achas isso?

– Ora porque gosto mais de pescar e não gosto de jogar á bola. Liberdade, se calhar, é sentirmo-nos bem.

Liberdade, liberdade. Trinta anos depois dela, Saul sabe que liberdade é apenas viver na ilusão de uma autonomia total, e de apenas fazer o quer. É, de facto, correr sem empecilho; mas também é ficar na quietude das doces águas que o paciente pescador escolhe. É voar nos sonhos em que ficamos imoveis e de sorriso nos lábios; é sonhar em voar sem medo de cair; é cair e crer em levantar-se; é poder, silenciosamente, pensar enquanto a boia fica vagueando serenamente na água ao sabor da brisa; é poder gritar enquanto se corre; é viver, ainda que preso ao fio da pesca; é respirar enquanto se corre preso ao trajeto da bola. É viver. É amar a vida. É olhar o Céu e ver o infinito e saber que apenas o podemos ver; é ver o vazio dócil que nessa imensidão incomensurável se espraia. É olhar as águas do rio que, mansas ou revoltosas, correm para o maior encontro de mares e mares de liberdade.

Passados cinquenta anos, a sua noção de liberdade mudaria, mas não muito. Continua sem saber dar-lhe uma definição concreta que salvaguarde todos os géneros de liberdades. Saul diz agora que só sabemos o que é a liberdade, quando dela estamos privados. Atreveu-se um dia a dizer que “Ela nasce connosco quando nos atrevemos a abandonar o útero materno. Deve ser a primeira conquista de liberdade! Não! Pronunciou Saul, imediata e repentinamente. - Essa foi a que, corajosamente, nos foi dada pela nossa mãe e pela qual, ao longo da vida, teremos que todos os dias de lutar.

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