De Quando te dava Música

 

De Quando te dava Música

Portuguese
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De quando te oferecia de bandeja as claves de sol em decíbeis que não soubemos manter nos limites autorizados pela lei. Distorcemo-nos em ruidos de fundo e exagerámo-nos como sopranos nas notas altas. Hoje são diferentes as músicas que nos largamos aos ouvidos. Eu arranho os meus poemas em acústicos solitários, treino acordes que empoleirados enfeitam as estreituras das pautas, afino cordas e assoberbo-me nas canções que nunca dançámos e no amor que nunca vivemos. Devolvo-me assim aos meus próprios sons. Àqueles com que às vezes me apetece furar-te os tímpanos e rasgar-te a pele com a argúcia das palhetas. Pouco me importa se os teus gostos mudaram. Nem tão pouco me choca que nunca tenhas percebido a perfeição na harmonia do Jazz ou a profundidade e o calor do Soul. Já não me pergunto sequer, se enquanto nos cantávamos em dueto, te ouvia em headvoice ou falsete. Mas incomoda-me que desperdices os teus ouvidos no acre dos metais que nem são afinal, assim tão preciosos. Admito. Custa-me que não reconheças nas letras a exactidão das métricas ou a beleza das estrofes. Ainda assim, gostaria de te dizer que se me acabaram os refrãos repetidos e as últimas sílabas estendidas até ao limite da voz. Mas não posso. Espera… não me interpretes mal. Já não receio esta coisa de me sentir fora dos tempos, ou de ouvir o meu próprio som. Isso não. Na verdade até me estou nas tintas para se desço ou subo o tom, se me queres uma oitava acima ou uma oitava abaixo. Também não é isso. Deixei de estar em Dó, em Sí, em ti. Hoje sou Mi, sou mim, sou eu. Tu Lá, eu cá, sem Ré, sem reu.  Sou por fim Sol, sou solo, sou só. Mas… sabes… as teclas de um piano, sobretudo as teclas dos pianos que nos cobrem a pele, aquelas pequenas escápulas que são afinal partes da nossa anatomia, sentem a falta da pressão certa, da ligeireza exacta para que as notas se harmonizem e se soltem no ar como pólens nas primaveras. O problema, sabes, o problema é que  elas se habituaram à agilidade dos teus dedos, reconhecem-lhes o teu toque, o teu calor, o teu deslizar suave e repentino nos fadeout das nossas melodias e agora… as minhas escápulas, a minha pele, toda eu  inteira, me transformei no zumbir irritante de um disco que se riscou.

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