Procurei sempre um lugar seguro dentro de alguém, algo que me permitisse mais do que, simplesmente, sobreviver no campo dos afetos. Independentemente de quem viesse a partilhar a minha intimidade conjugal, ter irmãos de alma, com quem pudesse caminhar ao longo da jornada, podendo crescer com eles e ser eu própria, parecia fazer tudo valer a pena. Não é possível passar pela vida, incólume, sem alguém a quem chamar casa. Um lugar onde possamos ser frágeis, imperfeitos, inseguros e, ao mesmo tempo, profundamente amados. Soube desde cedo que nem sempre seria a família a oferecer-me um lar e que, entre os amigos, existiam muitos conhecidos e amigos de ocasião e, só às vezes, com muita sorte, gente que vibrava na mesma frequência. Ao longo dos anos, vi gente partir e gente ficar. Gente de um simples entusiasmo, gente de caminho. Gente que nos diz muito, única na sua essência que, numa singela atitude, nos encanta. E que, pelo mesmo motivo, nos pode desencantar.
Acreditei que, quando não temos medo de dizer o que pensamos, quando não precisamos de nos defender a todo o momento, ainda que pensemos coisas diferentes, estamos com as pessoas certas. Achei que isto seria intuitivo e sem esforço. Aprendi que nem sempre é assim e aceitei ser parte da nossa própria vulnerabilidade, da nossa imperfeição humana. Pessoas boas também erram, também ferem e, felizes seremos, se permanecerem ao nosso lado e nos amarem de volta, nas nossas vicissitudes também. Percebi que esse lugar de pertença, talvez fosse feito de ajustes e alguns sacrifícios, como forma de garantir a sua permanência: aprendemos a calar pensamentos e opiniões, a não deixar que um ponto de vista, uma mudança de humor ou um mau momento destile um veneno desnecessário. Vale muito mais o bom que se reconhece presente, naquela pessoa que faz parte da nossa vida, aquilo que nela é digno e genuíno, do que qualquer aresta afiada. Vale mais ter paz do que ter razão. E há gente fantástica que, não sendo casa, me faz sentir em casa e me acolhe num quarto seguro, dentro da sua preciosa alma, onde partilha pedaços da minha vida. Estou muito grata por isto, permite-me caminhar mais leve, mais serena. Aprendi a confiar nas ações, pelo menos com aqueles cuja presença tanto estimo, e a acreditar que o que fazemos juntos, dia após dia, ao longo do tempo, dirá quem somos e, dessa forma, enraizará as nossas relações estruturais. Acreditei que só assim era possível deixar de viver de fragmentos e poder, um dia, chegar a casa, inteira, em alguém.
Pelos vistos, não. Não chega agir bem. Não chega ser verdadeiro. Não chega ser leal. Não chega. Durante todo este tempo, achei ter esse lugar seguro dentro de alguém que, não sendo perfeito, me era especial. Aprendi a abrir-me, a partilhar dores e medos, lágrimas e anseios – mais do que com qualquer outra pessoa. Partilhamos momentos, histórias, décadas que jamais poderei esquecer. Achei que as diferenças nos complementavam e enriqueciam, tornando-nos mais cúmplices, mais verdadeiras, mais protetoras, mais justas. Hoje, todavia, tudo caiu por terra. Tudo o que pensei ter nunca foi meu. Tudo o que faço, afinal, não é nem nunca será suficiente. E o tal lugar seguro, de partilha total, não é aqui. Aterra-me o quanto esta pessoa, no fim de contas, não me conhece… desde esse dia que não respiro direito, que não durmo sem este aperto. Abateu-se sobre mim uma tristeza avassaladora: não estava preparada para voltar a sentir, sobretudo, a injustiça, com alguém tão próximo. Aprendi a esperar tudo de (quase) todos mas nunca dela. Estendeu-me ao comprido. Feriu-me. E cobriu-nos com um manto pesado de estranheza e dor.
Volto à estaca zero, sem fé, sem fôlego. Pior do que não poder partilhar aquilo que mais me fere ou faz sonhar, é ouvir alguém, que me devia conhecer, defraudar a minha partilha e chamar aos meus lamentos “desculpas”. É reduzir o que sou a nada. Com um simples pestanejar. E custa tanto desenraizar: perdemos equilíbrio e vontade. Não vou entrar em guerras mentais, abrir a cartilha das dores antigas, ou mais recentes, e procurar ter razão porque me sinto ferida. Não vou. Vou guardá-las para mim e seguir em frente, deixando este lugar a que chamei casa durante tanto tempo, com dignidade e respeito. É preciso aceitar que ele não me pertence para poder sacudir esta tristeza. Em silêncio, sem conflitos. Do outro lado, também há dor e perplexidade, estou certa, e nada disso me conforta. Quero deixar partir a melancolia que me impede de respirar em plenitude, aceitando que tudo tem o seu tempo. Não quero ficar amarga só porque agora tenho medo. António Lobo Antunes escreveu um dia que “coragem é não ter medo de ter medo“. Preciso muito dela para restaurar a minha fé e emergir inteira, capaz de me proteger enquanto não voltar a sentir-me segura, amada e suficiente.
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