Do tempo que já não temos...

 

Do tempo que já não temos...

Portuguese
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Sabes do que tenho mais medo? Do tempo. Não sei se alguma vez te deste conta mas o tempo não é apenas esta condição pertinaz da vida, sempre indiferente a nós, aos nossos sonhos ou vontades. Não. O tempo é um papão voraz e faminto que se alimenta dos nossos instantes felizes e nos deixa apenas as memórias, como se fossem restos. O tempo é destrutivo e impiedoso, sabes? Torna-nos mais velhos e em troca de uma pseudo- sapiência (que afinal nem é ele que nos dá, é a vida) rouba-nos o fulgor, a crença, muitas vezes a verdadeira fé, mas sempre, sempre fica com tudo o que fisicamente nos é belo e atractivo. Eu deixei de ser quem conheceste. Enquanto o sol das tardes insinua a vida lá fora, eu vou-me esvaindo dela cá dentro. Toda eu em transformação, à superfície e em profundidade, a atrever-me à diferença imposta pelo passar dos dias. Se tudo o que apreciavas em mim se centrava no meu corpo, então, esquece! Nada meu existe exactamente como era. E se queres saber, não, não me consola saber que tu também mudaste. Aliás, o tempo é muito parco em consolo, ainda que nos tenhamos habituado à ausência do outro, a esse buraco no peito, de rebordos cauterizados, onde cabe um punho fechado. Repara que o teu cheiro se agarrou às minhas coisas como uma película fina de pó. Sinto-te, que queres? Sinto-te como se me respirasses aqui e agora para o ouvido e isto são coisas que a ciência não explica. Tens qualquer coisa de sino de igreja que avisa, que insiste e não perdoa. E apesar disso és tu quem me redimes. Não quero partilhar com ninguém os teus cabelos curtos por entre os meus dedos, a barba indolente que roças no meu rosto, nem o desenho da tua boca a sugar-me os lábios. Há qualquer coisa em ti que quase me priva de humanidade, que faz de mim um bicho, uma fêmea no cio reduzida à urgência do instinto animal, a querer obrigar o teu corpo ao desfiladeiro entre as minhas pernas. Quanto bastava dizermo-nos, com ambas as vozes no exacto registo, nem muito alto nem muito baixo, que nos amamos perdidamente e que, sim, temos medo de já não chegarmos a tempo? Que nos tolhe o coração esse receio insano de não conseguirmos fintar os ponteiros do relógio e por fim nos encontrarmos antes da meta, antes do final da corrida, do The End, do epílogo da nossa estória, do cerrar permanente dos nossos olhos? Dá-me um sinal de que também tu andas meio coxo, os tornozelos torcidos de tanto tropeçares nas sarjetas do tempo e de te enfiares nos buracos por onde me espreitas e revives. Mostra-me que ainda me tens agarrada à tua pele e que de nada te vale tentares esfoliar-me… que, por mais duches que tomes à noite, te deitas por vezes comigo. Dá-me um sinal de que não me queres entre os milhões de pessoas que por esse mundo fora se apaixonam e vergam à dor que lhes sai pelos olhos, pelos dedos, a reboque de um timming filho da puta, impossível de vergar à nossa vontade. De mim tens todos os sinais do mundo de que continuo a carregar-te comigo, como uma bagagem obrigatória nesta viagem da vida. Continuas a ser-me o caminho por onde vago à toa, acossada pela posse e pelo vazio, sem final feliz à espreita. Mas também és uma espécie de verdade, uma verdade não comprovada que me rasa a pele e me amarga os sonhos, e por isso hoje não finjo. Nem amanhã voltarei a fingir que não te amo e que o tempo me sobra para voltar a amar-te.

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